Sex, 18 de março de 2022, 18:51

‘Com quatro anos eu não mando, não’: Centenas de escolas fechadas e evasão escolar no campo
Quase metade das escolas rurais de Sergipe fechadas e a evasão diante das dificuldades em estudar longe de casa são assuntos de duas pesquisas da UFS
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“Eu não tive infância”

A frase acima foi dita à pesquisadora Regina Mota Araújo por 96% das mulheres entrevistadas por ela no assentamento Fortaleza, localizado em Nossa Senhora da Glória, Sergipe. Regina atribui a dolorosa afirmação das mulheres à ausência de políticas para a infância no campo, incluindo, claro, a educação.

“O que é a infância para essas populações? Um tempo lúdico, de direito de brincadeira e de escola”, reflete a pesquisadora. Ela ouviu os depoimentos durante seu mestrado, no Programa de Pós-Graduação em Educação da UFS (Ppged).

O assentamento Fortaleza foi formado a partir de uma ação de desapropriação do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), abrigando cerca de 45 famílias que viviam no acampamento Alto Bonito, em Poço Redondo, Sergipe. A instalação ocorreu em 1998 e a pequena escola foi inaugurada em 2003, depois de uma mobilização intensa da comunidade.


“Aí, pela nossa pouca sorte veio esse fechamento das escolas”, relata Maria Iolanda de Moura, vice-presidente da associação dos moradores do assentamento. (Fotos: Schirlene Reis - Ascom UFS)
“Aí, pela nossa pouca sorte veio esse fechamento das escolas”, relata Maria Iolanda de Moura, vice-presidente da associação dos moradores do assentamento. (Fotos: Schirlene Reis - Ascom UFS)

“Aí, quando a gente chegou aqui não tinha escola. Tinha um salão abandonado, ficava ali na sede da fazenda, onde as crianças estudavam lá. Aí, a gente pensou o que fazer pra construir uma escola. A gente juntou as crianças daqui, que era na faixa de umas quarenta e tantas crianças, botamos em cima dum caminhão e fomos pra frente do palácio de Aracaju, pedir ao governador que ele liberasse recurso pra gente construir uma escola no nosso assentamento. E funcionou”, narra Maria Iolanda de Moura, vice-presidente da associação dos moradores do assentamento.

“E ficou muito bom, as crianças estudando aqui, e pra nós foi uma maior riqueza sobre isso”, lembra Iolanda. “Aí, pela nossa pouca sorte veio esse fechamento das escolas”, lamentou a moradora (veja alguns depoimentos no vídeo ao final desta reportagem).

Segundo dados levantados pela pesquisadora Tereza Santos Carvalho, em seu doutorado no Programa de Pós-Graduação em Geografia (Ppgeo), 46,6% das escolas localizadas no campo, em Sergipe, foram fechadas no período de 1998 a 2020. Os motivos para o encerramento das atividades envolvem diversos fatores, os quais foram o alvo do estudo de Tereza.


Regina Mota Araújo, mestre e doutoranda do Ppgeo: “Existe uma ausência efetiva das crianças, uma evasão dessas crianças das escolas”.
Regina Mota Araújo, mestre e doutoranda do Ppgeo: “Existe uma ausência efetiva das crianças, uma evasão dessas crianças das escolas”.

‘Campo sem gente’

De acordo com Tereza Carvalho, a modernização da agricultura, que já vinha se desenhando há mais de um século, mas que foi intensificada na década de 1960, reflete um modelo de desenvolvimento “que pensa o campo sem gente”.

“Porque é um modelo que a tecnologia é mais voltada para o maquinário. Então, o que acontece? Quanto mais máquina se tem, menos pessoas [são necessárias] para se trabalhar com essa máquina”, resume Tereza, que é também professora da UFS.


“A educação é um direito de síntese, e está sendo negado ao povo do campo”, diz Tereza Santos Carvalho.
“A educação é um direito de síntese, e está sendo negado ao povo do campo”, diz Tereza Santos Carvalho.

A monocultura, característica desse modelo de produção, também exige grandes extensões de terras, fazendo minguarem as áreas de policultura de alimentos, típica da agricultura familiar, prejudicando mais ainda a permanência das populações no campo.

Soma-se a isso, alerta a docente, a precarização das escolas situadas nas áreas rurais, contribuindo para que as famílias que há gerações viviam no campo se aventurem nas cidades.

“Quem fica no campo enfrenta dificuldades em todos os sentidos, tanto para manter seu sustento, sustento de sua família, como também para estudar. Por quê? Porque como no campo a gente vê que as escolas sempre foram precarizadas — não sem motivo —, essa precarização vai afetando também a quantidade de alunos que a gente tem nas escolas”, pontua Tereza.


Inaugurada em 2003, a escola do assentamento Fortaleza foi fechada em 2017.
Inaugurada em 2003, a escola do assentamento Fortaleza foi fechada em 2017.

Outra justificativa usada pelo poder público para fechar as escolas é a de que a pouca quantidade de alunos encarece sua manutenção, assim como acarreta na necessidade da adoção de salas multisseriadas — reunindo alunos matriculados em mais de uma série. Esse modelo geralmente é considerado pelos gestores como pouco eficaz.

Tereza Carvalho, no entanto, discorda dessa perspectiva. Em sua pesquisa de doutorado, ela reflete que a multissérie não pode ser avaliada nas condições precárias em que é adotada nas escolas do campo.


O assentamento Fortaleza foi criado a partir da desapropriação, pelo Incra, de uma fazendo improdutiva em Nossa Senhora da Glória, SE.
O assentamento Fortaleza foi criado a partir da desapropriação, pelo Incra, de uma fazendo improdutiva em Nossa Senhora da Glória, SE.

O processo de fechamento das escolas rurais é chamado de nucleação, e consiste “no fechamento de escolas que estão com um número reduzido de alunos (em alguns casos esse aspecto não é verdadeiro) e o redirecionamento destes para uma escola denominada núcleo ou pólo”, explica Tereza no texto de sua tese. As escolas que recebem os estudantes geralmente se localizam na zona urbana do município ou no próprio campo, mas em povoados muitas vezes distantes.

O assentamento Fortaleza fica a cerca de 30 minutos, de carro, do povoado Aningas, onde está localizada a Escola Municipal Deputado Euvaldo Diniz, núcleo que recebe os estudantes da região. No entanto, para chegar até lá, o ônibus percorre outros povoados, aumentando bastante o trajeto.


“Eu não vou mandar com quatro! Só vou mudar com cinco”, diz Ediona Bispo do Nascimento, sobre matricular a filha de quatro anos em outro povoado.
“Eu não vou mandar com quatro! Só vou mudar com cinco”, diz Ediona Bispo do Nascimento, sobre matricular a filha de quatro anos em outro povoado.

‘Pode cortar, mas eu não mando’

Ediona Bispo do Nascimento tem duas filhas. Sofia, a mais velha, tem nove anos e começou a estudar aos cinco, já após a nucleação que fechou a escola do assentamento. A mãe lembra a dificuldade de mandar a filha tão pequena no transporte escolar para outro povoado.

“Rapaz, foi muito difícil, né? Muito difícil. Por causa, assim… mesmo que ela já tenha começado acho que já era com cinco anos, ela ainda chorava. E a gente fica com o coração partido. E foi muito difícil, muito, ela chorava, mas não tinha o que fazer, né?”, conta.

Ela relata que fica ainda mais aflita quando é época de chuva, pois o ônibus atravessa um trecho que considera arriscada. “Tem uma barragem que [o ônibus] passa, que quando chove é muito perigoso, ela [Sofia] já ficava dizendo que não queria ir, aí inventava tudo pra não ir pra escola, dizia que estava doente pra não ir”, recorda.

As crianças de diversas comunidades vão acompanhadas de monitores, sendo um responsável por cada localidade. A monitora dos alunos do assentamento Fortaleza vinha sendo uma moradora do próprio povoado, mas Ediona diz que já no final do último ano letivo houve uma troca.


Sem escola no assentamento, as crianças precisam percorrer outras localidades no transporte estudantil para chegarem à escola.
Sem escola no assentamento, as crianças precisam percorrer outras localidades no transporte estudantil para chegarem à escola.

“[A monitora] é muito conhecida e ela cuida bem dos meninos”, diz, ressaltando também o parentesco: “aí a gente já fica mais tranquilo, né, um pouco, saber que ela é tia, no caso, das minhas meninas”.

“Sei que ela ficou com a da Pedra Grande e a monitora da Pedra Grande ficou com as daqui. Aí [as crianças] já acharam estranho, a minha mesmo já: ‘ei, mainha, não era madrinha não, não era, não’, porque ela já estava acostumada com a daqui”, conta.

Clarisse, a filha mais nova de Ediona, tem quatro anos e já deveria estar na escola, mas a mãe assegura que não vai matricular a menina este ano (conversamos com as entrevistadas em fevereiro, antes do início do período letivo).

“Imagina essa aqui agora, que está com [quatro], mais difícil ainda! E ela é mais traquina ainda, eu vou ficar com o coração mais partido ainda. Por causa que a outra já foi mais velhinha um pouquinho, né? Diz que agora a lei é com quatro… e eu acho que… eu ‘acho’, não, eu não vou mandar com quatro! Só vou mudar com cinco. Diz que vai cortar o cartão, que eles vão… que eles venha me buscar, mas com quatro eu não boto, não”, assegura Ediona.

O cartão a que Ediona se refere é do Auxílio Brasil, novo nome dado ao Bolsa Família, programa social de transferência de renda implantado em 2003. Segundo a moradora, funcionários da prefeitura de Glória alertaram que as crianças devem estar na escola desde os quatro anos de idade para que a família permaneça no programa. No site do Ministério da Educação, no entanto, consta que, “para participar do Bolsa-Família, crianças e adolescentes, na faixa de seis a 15 anos, precisam cumprir frequência mínima de 85% das aulas, e os jovens de 16 a 17 anos devem frequentar, pelo menos, 75% da carga horária mensal”.


Moradoras do povoado relatam que são pressionadas a enviar e manter os filhos na escola em outro povoado, sob pena de perderem benefício social.
Moradoras do povoado relatam que são pressionadas a enviar e manter os filhos na escola em outro povoado, sob pena de perderem benefício social.

Aparentemente, o corte do auxílio é muitas vezes usado como forma de chantagem ou de pressão. Iolanda Moura denuncia que foi essa a estratégia usada pela prefeitura de Glória para “convencer” as mães do assentamento Fortaleza a assinar uma carta de anuência para o fechamento da escola do local e a transferência dos alunos para Aningas.

“A secretária de educação veio aqui forçando o pessoal a assinar um papel como [se] nós estivéssemos [favoráveis] naquele fechamento para levar as crianças para Aningas. Só que já tava fechada. E muitos disseram que não assinavam: ‘Eu não vou assinar porque o lugar das nossas crianças estarem é aqui’. Ela [ameaçou]: ‘vocês tenham certeza, se vocês não assinarem, o cartão do Bolsa Família vai ser cortado’”, relata a líder comunitária.

“Como a maioria aqui, como vocês sabem… tem dificuldade pra viver? Tem. O cartão do Bolsa Família ajuda muito. Com medo de perder, todas assinaram”, completa Iolanda. A ameaça é usada também para que as mães mantenham as crianças na escola-núcleo, evitando assim a evasão, que prejudica os indicadores do município.

A altivez de Ediona em dizer que não manda Clarisse para Aningas antes dos cinco anos de idade, ainda que cortem o benefício, é muito mais pela aflição e preocupação com a menina do que por dar pouco importância para o auxílio.

“Nós aqui só vivemos desse Bolsa Família. Quem tem, ainda umas vaquinha. Aí, quando diziam de cortar, nós tínhamos que mandar, que ficava com medo, não era?”, desabafa.


“A gente vive da roça, entendeu? E estando [as crianças] estudando aqui, têm mais um tempinho pra ajudar as mães e os pais”, diz Iolanda.
“A gente vive da roça, entendeu? E estando [as crianças] estudando aqui, têm mais um tempinho pra ajudar as mães e os pais”, diz Iolanda.

Mulheres sem infância

Regina Araújo contou em seu mestrado as histórias das infâncias - das crianças e das mulheres - do assentamento Fortaleza. Quando as famílias instalaram-se no local, em 1998, elas vinham de diversos outros lugares, depois de terem ocupado terras na localidade Alto Bonito, no município de Poço Redondo. Onde hoje está o assentamento, ficava a Fazenda Fortaleza, desapropriada pelo Incra por reconhecê-la como improdutiva.

Poucos dos adultos que vivem na localidade, portanto, tiveram suas infâncias no assentamento. A maioria vem de uma realidade em que nem terra para viver e trabalhar suas famílias tinham. Isso reflete nos relatos que Regina cita em seu trabalho e descrevemos no começo desta reportagem.

Ter uma escola na comunidade permite que as mães deem suporte aos filhos, assim como possibilita que as crianças contribuam na lida com a casa e o trabalho. Antes de qualquer julgamento “fácil”, de que criança não deve trabalhar, é importante lembrar que as condições sócio-econômicas das pessoas da comunidade e o modelo de produção da agricultura familiar requerem participação coletiva das famílias.

“A situação aqui pra gente viver não é fácil. Que a gente vive da roça, entendeu? E estando [as crianças] estudando aqui, têm mais um tempinho pra ajudar as mães e os pais. E estando indo pra Aningas as mães ficam muito preocupada, sendo aqui, quando dá um probleminha, a mãe vem rápido, já leva pra casa, vai ajeitar, vai acolher”, disserta Iolanda Moura.


Escola Municipal Deputado Euvaldo Diniz, no povoado Aningas, recebe os estudantes da região, incluindo o assentamento Fortaleza.
Escola Municipal Deputado Euvaldo Diniz, no povoado Aningas, recebe os estudantes da região, incluindo o assentamento Fortaleza.

A importância da escola na comunidade foi confirmada por Regina em sua pesquisa. Ela pontua que as diretrizes da educação infantil no campo nem contemplavam o projeto pedagógico da escola, mas sua existência já contribuía para o alívio das mães, de que seus filhos teriam um tempo todos os dias para viver sua infância, perto de casa, sem o desalento e os atropelos de uma viagem longa e diária para outro povoado.

Quando concluiu seu mestrado, em 2017, Regina levou o trabalho para apresentar e discutir com a comunidade. Foi justamente quando fecharam a escola. A pesquisadora ingressou então no doutorado para aprofundar a relação das crianças com a própria infância e com as escolas, abrangendo outros assentamentos.

“Eu ainda estou finalizando a minha a minha tese, mas as principais considerações que a gente observa, que a gente analisa, principalmente nos outros assentamentos os quais estou trazendo para minha tese, é que existe uma ausência efetiva das crianças, uma evasão dessas crianças das escolas”, aponta Regina.


O fechamento das escolas contribui para que as populações abandonem o campo e para a evasão escolar, apontam as pesquisas de Regina e Tereza.
O fechamento das escolas contribui para que as populações abandonem o campo e para a evasão escolar, apontam as pesquisas de Regina e Tereza.

A pesquisa de Tereza Carvalho também aponta para esse desfecho.

“À medida que aumenta o número de fechamento dessas escolas, ou seja, dessa nucleação, há uma desistência, no caminho, das crianças, em irem pra escola. E a gente viu uma uma redução imensa, nos municípios de Sergipe, das matrículas. Então o que que a gente concluiu? Que essa essa política de fechamento vai de encontro ao direito constitucional de oferta de educação”, conclui Tereza.

“A educação é um direito de síntese, está garantido na constituição e nos tratados internacionais. E está sendo negado ao povo do campo quando a gente olha os dados”, arremata.

Pelo menos por um ano, Clarisse, filha de Ediona, se somará a essas estatísticas. A luta por uma escola na comunidade pode parecer pouco, mas quando Iolanda descreveu o cenário das crianças estudando perto de casa como “maior riqueza”, ela descreveu exatamente a dimensão que o caso tem para as populações do campo.

Para saber mais

A dissertação de Regina Araújo está disponível no Repositório Institucional da UFS, clicando aqui. A tese de Tereza Carvalho ainda não foi publicada no Repositório - esta reportagem será atualizada com o link para o trabalho, assim que ele estiver disponível.

Marcilio Costa - Ascom UFS
comunica@academico.ufs.br


Atualizado em: Sex, 08 de abril de 2022, 14:24
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