Há cerca de seis anos, o professor do Departamento de História da Universidade Federal de Sergipe, Carlos Malaquias, estuda a riqueza e a escravidão em Sergipe a partir de inventários nos Arquivos do Estado e do Tribunal de Justiça.
Dessa imersão, foi publicado, no final do ano passado, um artigo sobre as dinâmicas da população e da família escrava em Sergipe na primeira metade do século XIX na revista Resgate, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). O texto tem co-autoria da egressa de História da UFS, Isabela Leite.
Malaquias afirma que a pesquisa surgiu do interesse de responder questões ainda não detalhadas nos estudos, como as origens da população no estado. Sem a existência de censo e estatísticas fragmentadas do período analisado, o professor recorreu aos inventários post mortem.
“Os inventários não são tão bons como os censos nem tão abrangentes quanto aos quadros de população, porque só faz inventário quem tem riqueza e herdeiro. Eles são uma pequena amostra de um conjunto mais amplo”, explica. Ele ainda acrescenta que para uma pesquisa baseada nessa fonte ser boa precisa reunir muitos documentos.
“A gente resolveu utilizar os inventários porque são fontes que fornecem informações sobre essa população e resolveu estudar essa população porque há características do século XIX que não eram conhecidas até então”, complementa o professor - que também é coordenador do Grupo de Pesquisa Mundo Atlântico e Colonização Portuguesa.
O estudo analisou 885 inventários com informações de 7.052 escravos para a partilha (divisão de bens). Não foi possível inferir o sexo em 1,36% dos casos, cor ou origem (22,4%) e idade (39,8%).
População
O estudo aponta que três em cada quatro escravos em Sergipe, entre 1800 e 1849, eram nascidos no Brasil. A baixa africanidade, segundo o artigo, confirma indicações de pesquisa de Luiz Mott na década de 1980, que mostrou que 66% dos cativos eram naturais da América Portuguesa no final do século XVIII e de que os escravos oriundos do continente africano não deveriam ter ultrapassado um terço das escravarias no estado.
“Os altos índices de reprodução seriam explicados pelo “estilo de pequena empresa doméstica dos engenhos sergipanos”, carentes de capital para adquirir cativos africanos, e pela “impossibilidade de importar negros diretamente da costa da África”, uma vez que Sergipe não possuía porto para navios de trato transatlântico”, escrevem os pesquisadores.
O dado não descarta a participação dos proprietários sergipanos no tráfico negreiro, mesmo após a proibição em 1831. “O tráfico sempre esteve presente em Sergipe, menos intenso do que na Bahia, no Rio de Janeiro e em Minas Gerais, mas, ainda assim, sendo responsável por um a cada quatro escravos ou a cada cinco, a depender da década”, destacou Malaquias.
Quanto à idade, 46,63% eram jovens e adultos (13 e 49 anos) , 37,45% crianças (0 e 12 anos) e 9,59% idosos (acima de 50 anos). Uma pirâmide comparativa mostra, segundo a publicação, “o padrão dos cativos nascidos no Brasil é muito representativo da reprodução interna, enquanto o dos africanos informa a presença do tráfico, incorporando mais homens em idade produtiva à escravaria”.
Família
Dos 1.672 escravos com laços de parentescos registrados nos inventários, 51,14% eram filhos, 31,10% casados, mães e pais sem cônjuge informado, 16,57% e 0,96%, respectivamente, e outros laços (0,24%).
O estudo observa que é provável que muitos escrivães, inventariantes e louvados fossem displicentes nos registros das informações acima, porém, o quantitativo permite algumas considerações: estar ligado a uma família não era estranho aos cativos - geralmente, ela era formada por pais e filhos.
Quanto às famílias monoparentais, o registro mais frequente era de mulheres com filhos sem o nome do marido, “o que não significa que não havia um pai, mas apenas não foi registrado na fonte, talvez por não serem unidos pela Igreja, ou, ainda, por ser um escravo de outra propriedade ou uma pessoa livre”, indica o texto.
Dos 520 escravos casados, 82 foram separados na partilha de bens. Com relação aos filhos, 46 foram apartados da família conjugal e 348 crianças de núcleos monoparentais. Essa separação não significa, necessariamente, uma afastamento físico, uma vez que muitos “passavam a viver com os herdeiros na mesma propriedade dos inventariados” ou em outras relações senhoriais que permitiam a vizinhança entre pais e filhos.
A maioria dos casados também estava em grandes propriedades: 54,8% viviam em posses com mais de 50 escravos e 34,3% entre 10 e 50 escravos. De acordo com os pesquisadores, o casamento era “virtualmente” negado àqueles que viviam em pequenas posses pelas dificuldades de “conseguir um par, como também era mais complicado manter o casal junto na partilha dos bens”.
Nesse sentido, a experiência familiar dos escravos dependia do “acesso ao casamento e à formação de família conjugal, o tamanho da escravaria e o nível de riqueza dos proprietários”,segundo o trabalho.
O professor Carlos Malaquias afirma que a conclusão do estudo aponta para a polissemia da representação da família: para os senhores de escravos, “ganho de poder”, porque os cativos com arranjo familiar tinham “privilégios” , como acesso a terras para plantio e criação de animal, o que poderia torná-los “indispostos” para rebeliões contra a ordem escravista.
Também um espaço para manutenção da cultura africana, com a incorporação e socialização de afrodescendentes advindos do tráfico, e produção de resistência. “ A gente percebe que no século XIX grandes revoltas de escravos no Sudeste do país envolvem escravos nascidos no Brasil e que têm laços familiares. De alguma maneira, esses sujeitos ajudam a organizar essas revoltas”, afirma.
“Eu trago, na conclusão, o caso dos quilombos volantes em Sergipe, que são escravos que fogem, não se afastam do território escravista e vivem circulando os antigos engenhos. E o que é mais incrível nesse caso, brilhantemente estudado pelo Igor Fonsêca na sua tese, é que os fugitivos recebem apoio dos escravos, de quem ainda estava na senzala, como lugar para dormir, alimentos e equipamentos roubados da fazenda”, ressalta o professor.
O texto da pesquisa acrescenta que a conferência de dados está em andamento e que os números apresentados podem sofrer “pequenas revisões no futuro, muito embora as tendências apontadas dificilmente mudarão”. Segundo Carlos Malaquias, podem ser encontrados novos documentos relacionados ao período. Ele também informou que o projeto de pesquisa já mapeou mais de 1.964 inventários com informações de quase 13 mil escravos que abrangem um período que vai até 1874.
Abel Victor - Rádio UFS
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Pesquisa revela predominância em SE de escravos nascidos no Brasil entre 1800 e 1849