Abel Victor| Rádio UFS - Em quase quatro décadas, a representação da violência obstétrica nas telenovelas brasileiras foi marcada pela ausência de problematização temática. A conclusão é de um estudo publicado na Revista Eletrônica de Comunicação e Inovação da Saúde, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), em dezembro do ano passado, pela professora da Universidade Federal de Sergipe (UFS), Renata Malta, e o mestre em Comunicação Social, Jônatas Santos.
O objetivo da pesquisa foi analisar cenas de parto de telenovelas exibidas pela Rede Globo entre 1980 e 2017 para identificação das diversas representações da violência obstétrica (velada ou explícita). Para isso, foram utilizados dois métodos complementares: análise de conteúdo e análise de imagens em movimento. Depois disso, a violência midiatizada contra as parturientes foi classificada em três eixos: violência pela situação, violência pelo abandono e violência direta.
Das 60 cenas selecionadas, 77% representavam um tipo de violência categorizada pelo estudo. A maioria (61%) era relacionada à violência direta, quando a violência, física ou psicológica partia de profissionais da saúde, parteiras ou aqueles que auxiliaram o parto de forma amadora. Em seguida, a violência por abandono - gestante desacompanhada de alguém com laço afetivo durante o parto - foi identificada em 45,70% dos episódios. Já a violência pela situação - quando o parto acontecia em lugar inadequado - foi observada em 39,10% do material estudado.
Em 23% das cenas, não foi encontrado nenhum nível de violência obstétrica, com narrativa humanizada, acompanhamento dos pais dos bebês e trilha sonora que passa a sensação de tranquilidade. Um exemplo disso é a novela Amor à Vida (2013), quando a cesariana é justificada pela ausência de dilatação da personagem, e o desconforto dela com o procedimento cirúrgico é tratado com respeito, contribuindo para uma visão positiva do parto normal.
Professora do Departamento de Comunicação Social (DCOS) e coordenadora do estudo, Renata Malta afirma que os resultados mostram que a representação da violência obstétrica apareceu com frequência nas telenovelas, mas com a gravidade do assunto “silenciada e velada”. “Então, personagens que sofrem violência obstétrica nas telenovelas não questionam, não problematizam a violência sofrida. De fato, essa violência acaba sendo velada”, ressalta.
Malta ainda pontua que é preocupante a naturalização do assunto nas representações do parto, que chega a muitas mulheres através do universo ficcional. “Então, essa representação tem um papel muito mais significativo para construção do imaginário coletivo sobre o parto, se a gente comparar com outros tipos de representação, os quais a gente tem acesso tanto na vida real como na ficção.”
Ao longo da pesquisa, a professora observou que as novelas foram responsáveis por agenciar diversos temas na sociedade, como clonagem e tráfico de mulheres. Ela destaca também que grande parte do que é discutido surge nas narrativas ficcionais. “Eu fico pensando que a falta de discussão do tema na sociedade, certamente, tem grande relação com a falta de problematização na novela. Se a novela tivesse pautado, a gente teria uma discussão mais relevante do tema na sociedade, como outros temas tiveram essa discussão, especialmente, em períodos anteriores em que a audiência era muito maior do que a gente tem hoje”, enfatiza.
O artigo é um dos pilares de um projeto de pesquisa que começou em 2017 com intuito de investigar a representação do parto nas telenovelas. Abordar como a violência obstétrica é retratada nas novelas traz um ineditismo para o estudo, conta a pesquisadora, uma vez que é “um tema pouco explorado, pouco estudado” e, quando analisado, volta-se para as representações da maternidade ou da violência contra a mulher.
Renata Malta vislumbra a realização de um novo estudo de recepção para entender como as mulheres e parturientes recebem os conteúdos em que os partos são representados. “Seria interessante como desdobramento entender a ponta, a recepção, como é que o público e, em específico, mulheres nessas condições recebem e interpretam esse conteúdo. É uma ideia que tenho mais adiante.
O que é a violência obstétrica?
Um estudo da Fundação Perseu Abramo, de 2010, revelou que uma a cada quatro mulheres sofreu violência obstétrica no país. As mais recorrentes foram: gritos, procedimentos dolorosos sem consentimento ou informação e falta de analgesia. De acordo com a Artemis, uma organização não governamental, o termo é caracterizado “pela apropriação do corpo e processos reprodutivos das mulheres pelos profissionais de saúde, através do tratamento desumanizado, abuso da medicalização e patologização dos processos naturais, causando a perda da autonomia e capacidade de decidir livremente sobre seus corpos e sexualidade, impactando negativamente na qualidade de vidas das mulheres”.