A piada é um dos principais elementos do humor. Cercada de ambiguidade e com o objetivo superficial de fazer rir, pode ser benevolente, transgressora ou agressiva. “Envolve uma questão importante da psicanálise. Se olharmos por alto, a piada é sempre interpretada teoricamente como uma espécie de vitória do sujeito quanto a suas restrições. Há uma ideia geral de que, na piada, você pode dizer o que você é proibido na linguagem comum, e isso dá para a ela e ao humor um papel importante, quase revolucionário”.
Essa fala é de Daniel Coelho, professor da UFS e orientador da dissertação de mestrado “Riso, humor e racismo: narrativa de exclusão”, desenvolvida pela pesquisadora Fabyanne Wilke Costa Santos no Programa de Pós-Graduação em Psicologia.
No entanto, destrincha Daniel, “o que quisemos demonstrar é que não é só de papel positivo que a piada vive. Na verdade, o que determinadas piadas fazem é manter um certo quadro de dominação”.
Segundo Fabyanne, a intenção da pesquisa é compreender porque as chamadas “piadas de preto”, mesmo tendo características agressivas, ainda são vistas como uma forma de expressão inofensiva na sociedade.
Relação com o regime escravocrata no Brasil
De acordo com a pesquisa, existe uma forte relação entre as “piadas de preto” e a colonização no Brasil, funcionando como um modo de manter as antigas relações coloniais escravistas.
A piada faz parte de um mecanismo racista, que desempenha bem o seu objetivo, pois se aproveita da prerrogativa de ser “apenas uma brincadeira”. “Existe uma lei anti-racista e esta não consegue penalizar esse tipo de discurso. Não afirmamos que isso é correto ou não, nosso objetivo é entender porque determinadas narrativas como a piada conseguem se manter no senso comum”, explica Fabyanne.
É possível compreender também a diferença entre o racismo no Brasil e em outros países, como Estados Unidos e África do Sul. “Não tivemos regime de Apartheid, mas então por que, depois da abolição da escravatura, negros e brancos não ocupam os mesmos lugares? Concluímos que esse tipo de situação interfere na vida do negro e isso é manifestado de diversas formas em seu cotidiano”, acrescenta.
A pesquisa categorizou três tipos de piadas: aquelas com o objetivo prioritário benevolente, as que buscam subverter uma norma e fazer daquilo algo melhor, e as piadas agressivas, geralmente contra uma minoria social, que têm o intuito de manter um quadro de dominação - é nestas que as piadas racistas geralmente se encaixam.
‘Piadas de preto’: as que agridem e as que denunciam
As ditas “piadas de preto” foram classificadas em: eminentemente agressivas e com potencial de denúncia.
A pesquisadora ainda relata que foi muito mais fácil encontrar piadas que retratassem o cenário dos Estados Unidos e da África do Sul, por nesses lugares ter ocorrido o regime do Apartheid declarado. “Foi bem mais difícil encontrar piadas que representassem o Brasil, porque é muito mais sutil. Aqui, as pessoas falam, mas não dizem que falam”, complementa.
Um crioulo entra no mesmo ônibus em que viajava uma senhora com um macaquinho no colo. O negão, então, pergunta pro motorista:
- Ué, já tá podendo levar macaco no ônibus?
- Poder não pode! – responde o motorista. – Mas fica aí na moita que eu finjo que não te vi...
Esta piada com característica de agressão remonta à apropriação da teoria darwinista sobre a evolução humana: o chamado darwinismo social, a crença equívoca de que negros estão em uma escala inferior de desenvolvimento, mais próximos aos macacos. Uma ideia equivocada, porém, veementemente difundida e de certa forma acreditada até hoje.
Em um ônibus vão uma mãe branca com o filhinho no colo e uma mãe negra com o seu filho, lado a lado, no banco. O nenê branco fica com fome e começa a chorar, aí sua mãe abre a camisa, pega o seio e lhe dá de mamar. Ele mama, quando saciado abandona o seio da mãe. Antes que ele pegue no sono, a mãe dá uns tapinhas nas suas costas para ele arrotar. Ele arrota e dorme.
O pequeno filho da mãe negra também fica com fome e começa a chorar, procedendo então da mesma forma que o “branquinho”: puxa a camisa da mãe querendo mamar. Depois que o menino fica saciado, ela guarda o seio, fecha a camisa e começa a dar tapinhas nas costas do neguinho. Até que diz: “Arrota, meu filho. Arrota!”
O neguinho, todo assustado, levanta incontinente as mãos para cima.
Nesta piada com característica de denúncia, o jogo de palavras que leva à “graça” permite compreender que “arrota” soa para o bebê negro como “a Rota”, em alusão às Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar, constituídas pelo comando de Policiamento de Choque do Estado de São Paulo. A Rota é famosa por realizar caçadas, prisões e assassinatos de modo arbitrário, principalmente na época da ditadura militar. Ao mostrar o medo que o garoto negro sente ao ouvir tais palavras, fica evidenciada a denúncia de que, mesmo pouco depois de nascer, a pessoa negra já vive um temor pela repressão policial.
“A cor da pele negra é, no Brasil, justificativa para o enquadramento de sujeitos como bandidos. Isso é reflexo de uma condição social racista e classista que redunda em práticas cruéis e levam à opressão e repressão do povo negro, em especial os homens negros”, define Fabyanne em sua pesquisa.
Em explicação complementar, Daniel ainda salienta: “Esse não é um trabalho contra a piada. O que estamos atacando são certas piadas, essa pequena parte do universo do humor, com uma relação muito forte com a história do escravismo brasileiro e que funcionou historicamente para manter essas relações”.
Para saber mais
O trabalho completo pode ser acessado no Repositório Institucional da UFS, clicando aqui.
Brunna Martins (bolsista)
Marcilio Costa
comunica@ufs.br