De acordo com a Secretaria de Segurança Pública de Sergipe, mais de 40% dos homicídios dolosos cometidos contra mulheres, registrados no estado em 2018, foram enquadrados como feminicídio. Foram 16 casos dentre os 37 fatais. Feminicídio é o assassinato cometido contra mulheres em razão de sua condição de mulher. Foi definido pela Lei 13.104/2015 como ‘agravante’ quando do julgamento do réu e incluído na lista de crimes hediondos.
Além dos crimes fatais, vários outros casos de violência contra a mulher foram registrados nos municípios de Aracaju, Itabaiana, Lagarto e Estância – onde há delegacias da mulher –, incluindo-se ameaça (1.585 casos), lesão corporal (795), injúria (614), dentre outros.
Incomodada com o tema da violência de gênero e dos relacionamentos abusivos, Lynna Gabriella Silva Unger escreveu sua dissertação de mestrado intitulada “Sinônimo de amar é sofrer?”: Juventude, violência nas relações íntimas e os processos de subjetivação em uma rede social, pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social (PPGPSI) da Universidade Federal de Sergipe.
Apesar de ser graduada em Biologia, Lynna teve contato com as discussões sobre gênero e violência ainda durante a graduação, quando estava fazendo estágio em espaço não-formal, ou seja, em ambientes que não fossem a escola.
Ela explica: “na época, a professora-coordenadora do estágio recebeu um convite para fazer uma mostra sobre violência de gênero, aí ela levou esse convite até a gente e nos desafiou a fazer essa mostra como atividade da disciplina. De cara, toda a turma passou por um estranhamento, inclusive eu passei, afinal de contas nosso estágio era em ciências de biologia e ela queria que a gente falasse de violência de gênero. Mas a professora faz essa problematização, abre esses caminhos para a gente ver como a biologia diz muito sobre essa problemática da violência de gênero, esse imaginário social dos papéis de gênero”.
Lynna conta que ao fazer estágio no Colégio de Aplicação da UFS (Codap), buscava se engajar com os alunos fora da sala de aula, de forma a conhecer suas experiências. Foi assim que ela presenciou uma discussão de um casal adolescente, em que o garoto disse à namorada: “fecha as pernas, porque mulher minha não fica se exibindo pros outros (sic)”.
“Foi um adolescente de 13, 14 anos. A gente acha que esse discurso machista só se refere a pessoas mais velhas, quando na verdade ele circula desde cedo. Ele circula nas escolas, nas famílias, nas igrejas, e chega a todas as idades. Se esse é o discurso ao qual você é exposto, então você vai reproduzir isso”, conta.
“Um menino de 14 anos está reproduzindo o que o mundo diz como normal. A partir dessa cultura machista, nós temos um ideal de amor romântico que vai nos colocar em posição de subserviência, que alimenta essas ideias de controle, posse e de ciúme. Sendo que este último se reflete na seguinte ideia: ‘se ele não tem ciúme, então ele não me ama’”, argumenta.
Assim, Lynna trabalhou em sua monografia da graduação especificamente com situações abusivas em relacionamentos juvenis, expandindo o tema na pós-graduação para englobar mais formas de relacionamentos abusivos. A partir daí sua intenção era conseguir identificar como as pessoas vítimas de relações abusivas conseguiam se perceber nesse tipo de relação, e então entender como os discursos que normatizam esses tipos de relacionamento circulam na sociedade.
Relatos na rede
A investigação das redes sociais se deu através do contato com grupos e coletivos feministas da UFS que debatiam a violência de gênero. “Me foi citado ao grupo de Facebook onde eram feitos os relatos, e eu pedi autorização para fazer parte do grupo, expliquei o que pretendia fazer, recebi essa autorização e comecei a acompanhar os relatos. Estes eram anônimos, mas as moderadoras também criaram um link para preencher um tipo de formulário no Google a cada relato, onde você pode fazer seu desabafo de forma anônima. Acabou que isso deu um norte que a gente não tinha, que era destacar essa capacidade da internet, das redes sociais de serem espaços de potência”, explica.
Em seu trabalho, Lynna reuniu os depoimentos das mulheres no grupo do Facebook e os analisou tendo como metodologia a análise de discurso proposta pelo filósofo Michel Foucault. São relatos espontâneos, que demonstram, segundo concluiu a pesquisadora, “relações de poder que circunscrevem tais relações abusivas, as quais indicam tendências e enfatizam algumas práticas hegemônicas”.
Dos relatos obtidos, ela colheu um total de 10 para a dissertação, e destaca um que a marcou profundamente. “Teve uma moça que foi um dos meus casos... [pausa]... ela hoje é uma jovem morta, foi uma vítima de feminicídio. Ela me contou que quando percebeu que estava numa relação abusiva e tentou se afastar, ele ameaçou se matar. Isso também é um discurso muito acionado nesses relacionamentos, infelizmente”. A personagem assassinada aparece no trabalho de Lynna sob o pseudônimo Dara.
“Usando as palavras dela: ‘é muito doentio isso, porque a minha primeira reação na época foi pensar que ele me amava tanto que estava disposto a dar a vida por mim’. E mais uma vez a gente usa esse amor ‘romântico’ como algo passível de justificar essa noção de que ‘foi por amor’. Quer dizer, até que ponto esse amor pode ser utilizado para justificar o que não tem justificativa? Na verdade, só mostra o quanto nossa sociedade é doentia”, afirma.
Apesar da dura realidade de casos como esses, Lynna acredita que mecanismos como as redes sociais podem ajudar a subverter a lógica desses discursos que aprisionam as vítimas de relações abusivas. “As mídias sociais são uma ferramenta potente e também pedagógica, são os espaços que nos ajudam a pluralizar essas vozes. Ajudam a pluralizar os sentidos e as formas de ver o mundo”, enfatiza.
“Quando a gente passa a ter referenciais de outros modos é que vemos que é possível sair desse padrão que é tão bem-aceito como normal no nosso meio social, e tornar nesse normal questionável. Então a gente vê nas redes sociais essa potência ganhar espaço, onde eu possa desabafar falando meu nome e sobrenome, porque ali eu posso encontrar um modo de existir, onde não me recriminem”.
E ela não esconde a vontade de ver esses discursos chegando ao fim e permitindo que as relações afetivas possam ser construídas em maior liberdade. “Se há quem diga que esses relacionamentos ‘românticos’ que na verdade são abusivos são uma verdade, então também posso chegar e dizer que há outras verdades, outras narrativas. Que não é tão natural assim, não é normal, e que a gente pode desconstruir, pluralizar e romper com esse discurso. E as redes sociais vão atuar como ferramentas para isso, e com isso nos permite pensar para além desses discursos. E que a gente possa chegar ao ponto em que possamos existir sem esse discurso ser algo factível”.
Para saber mais
A dissertação pode ser acessada, na íntegra, no Repositório Institucional da UFS, clicando aqui.
Vinícius Oliveira*
Marcilio Costa (jornalista supervisor)
* Estudante de Jornalismo da UFS. Esta matéria foi desenvolvida como parte das atividades de Estágio Curricular Supervisionado do curso.