Ter, 15 de outubro de 2019, 17:10

Filhos de casais do mesmo sexo reproduzem padrões heteronormativos, indica estudo
Mesmo educadas por casais homoparentais, crianças reproduzem noções de ‘menino e menina’ de modo semelhante a filhos de casais heterossexuais
Ilustra

Brincadeira de menina, brincadeira de menino. Carrinhos para os meninos, bonecas para as meninas. Azul para eles, rosa para elas. Essas são frases que refletem padrões de gênero e que costumamos ouvir quando lidamos com crianças na fase de desenvolvimento infantil. São estereótipos que representam um conceito heteronormativo de gênero.

O projeto de iniciação científica “Homoparentalidade: Análise do desenvolvimento infantil através da brincadeira”, vencedor prêmio no 28º Encontro de Iniciação Científica na área de Ciências Humanas, teve justamente esse objetivo: investigar os papéis de gênero de crianças adotadas por casais homoparentais, por meio de brincadeiras espontâneas de faz de conta.

Com autoria de Ana Beatriz Villar Lessa, aluna do sétimo período de Psicologia da UFS e com orientação de Elder Cerqueira, mestre e doutor em psicologia e pós-doutor em sexualidade humana, a pesquisa buscou analisar e caracterizar os episódios de brincadeira espontânea, além de investigar se crianças brasileiras adotadas por casais homoafetivos aprendem e reproduzem estereotipia e segregação de gênero em brincadeiras de faz de conta.

A pesquisa teve sua concepção ainda no Canadá, quando o professor Elder Cerqueira acompanhou, durante um ano, 12 famílias homoafetivas para identificar nas crianças canadenses tais padrões de gênero nas brincadeiras. Depois o professor retornou para o Brasil e propôs na UFS o projeto de PIBIC - o programa que concede bolsas de iniciação científica a estudantes.

Em Aracaju, o estudo foi realizado com nove famílias de casais homoparentais com intuito de verificar se as crianças criadas por um casal do mesmo sexo lidavam com a ideia de gênero - noção de menino e menina, de brincadeiras masculinizadas e feminilizadas - de um modo diferente em relação às crianças criadas por casais heteroafetivos.

As pesquisas apontaram que não. Mesmo não podendo generalizar os resultados, os estudos indicam que as crianças, mesmo em um ambiente de desenvolvimento que foge à heteronormatividade, acabam desenvolvendo de forma “regular” as noções de gênero de maneira bastante similar que os filhos de pais heterossexuais.

“Mesmo tendo modelos parentais, dentro de casa, de pessoas do mesmo sexo, as crianças desenvolviam aspectos na brincadeira que eram regulares. As pesquisas mostram que isso parece ser um fenômeno quase universal. Crianças a partir dos dois anos, quando começam a ter um pensamento simbólico, a pensar, imaginar e sair da realidade completa, ela começa a desenvolver a noção de gênero”, afirma Elder. Diante disso, a pesquisa mostrou que as crianças possuem a tendência de reproduzir estereotipias de gênero nas brincadeiras, mas a segregação não foi observada durante o estudo.


Elder Cerqueira: "O que importa para nós, da psicologia do desenvolvimento, é dizer: em questões de gênero e sexualidade os pais não são os únicos modelos dessa criança". (Fotos: Adilson Andrade - Ascom/UFS)
Elder Cerqueira: "O que importa para nós, da psicologia do desenvolvimento, é dizer: em questões de gênero e sexualidade os pais não são os únicos modelos dessa criança". (Fotos: Adilson Andrade - Ascom/UFS)

“Segregação a gente já tinha visto na literatura [ou seja, em outros estudos] que vinha diminuindo em todas as crianças. [A segregação,] que é essa coisa de formar grupos excludentes, diminuiu em todo o mundo talvez mais pela forma como nós educamos as crianças hoje em dia, as escolas não dividem mais tanto assim e até com os programas de televisão acabou um pouco essa cultura da segregação. Agora, estereotipia é forte. Estereotipia é reproduzir padrões culturais polarizados de homem e mulher nessas interações”, salienta o professor.

Estereotipia e segregação

O professor Elder Cerqueira caracteriza a estereotipia quando a criança repete estereótipos culturais sobre o que é ser homem e o que é ser mulher. Por exemplo, brincar de carrinho, de bola, de boneca reproduz estereótipos culturais. Essa noção começa a se desenvolver a partir de dois a seis anos.

“A gente tem uma tabela que mensura a estereotipia em crianças, que vai desde, por exemplo, uma forma sutil de estereotipia: - as meninas verbalizam mais durante um minuto e verbalizam com o olhar direto para outra menina, enquanto que os meninos além de verbalizarem menos fazem isso de uma forma ampla, não é íntimo”, pontua o professor.

Mas tem estereotipias que são mais visíveis. Por exemplo, a escolha de personagens de tema de brincadeira. Meninos tem mais brincadeiras motoras, que são chamadas de fantasia realística, que são baseadas em super-heróis, na relação de poder, da força física, isso é uma estereotipia, que é chamada de macro.

A segregação pode ser conceituada quando mais da metade das interações que a criança faz é direcionada a outro parceiro do mesmo gênero. Quando meninos só brincam e interagem com meninos, e meninas só brincam e interagem com meninas. “Segregação é aquela fase onde a criança já começa a criar uma identidade grupal, e para se firmar nessa identidade ela segrega o outro grupo, é aquela fase em que meninos dizem que odeiam as meninas e vice-versa e formam grupos”, esclarece o docente.

Metodologia da pesquisa

A metodologia foi baseada no modelo de microetnografia. Dois pesquisadores vão a campo no ambiente natural da criança: por exemplo, praia, no parque, no playground do prédio, no quarto e uma câmera é instalada discretamente mirando em uma criança foco, que é sorteada. Um dos pesquisadores monta uma planilha que já possui comportamentos pré-registrados de uma criança brincando.

Uma planilha padrão para quem estuda nesta área da psicologia, que envolve vocalizações, verbalizações, interações físicas, comportamentos mais amplos, comportamentos motores, etc. Enquanto isso, o outro pesquisador vai relatando tudo que está acontecendo, de forma cursiva como uma redação. Isso dura só um episódio da brincadeira.

Depois, os dados da planilha e os descritos são somados a uma microanálise das imagens. Calculam-se tempo, forma de interação, se a criança olhou para a mãe, para o orientador, para outra criança, se tocou, se mexeu, o que ela disse. É uma planilha que analisa o comportamento infantil minuto a minuto. Todo o processo de monitorar as crianças através da câmera passa por comissão de ética e os pais assinam um termo de consentimento.

Reforço de estereotipia como forma de ajustamento: preconceito

Mas, por que as crianças, mesmo em um contexto que não é padrão da heteronormatividade, acabam reproduzindo estereotipias de gênero que não condizem com o seu desenvolvimento familiar? Segundo o Elder Cerqueira, dois fatores podem explicar esse fenômeno: o preconceito e a influência da macrocultura.

O primeiro diz respeito ao reforço de estereótipo de gênero feita sem intenção por pais e familiares para evitar que a criança passe por algum tipo de preconceito na infância.

“Os pais e toda a sociedade acham que essa criança pode viver preconceito, quando entrar na escola, na própria família, por vários motivos. Parece que os pais, para evitar que essa criança sofra preconceito, têm uma mega-preocupação, ao que desenvolve o padrão. E, às vezes, nós percebemos que eles até exageram, maximizam, algo que é natural só para provar que está ‘tudo bem’”, reflete Elder.


A pesquisa desenvolvida por Ana Beatriz Villar Lessa, aluna do sétimo período de Psicologia, foi premiada no 28º Encontro de Iniciação Científica da UFS.
A pesquisa desenvolvida por Ana Beatriz Villar Lessa, aluna do sétimo período de Psicologia, foi premiada no 28º Encontro de Iniciação Científica da UFS.

Ana Beatriz, autora da pesquisa, conta um caso em especial que chamou muito atenção dos pesquisadores sobre a situação de reforço de padrões de gênero no ambiente familiar. “Foi de uma criança, de uma menininha, adotada por um casal de lésbicas. Primeiro que o quarto dela era todo rosa, cheio de brinquedos rosa, completamente dentro dos padrões de gênero propagados dentro de nossa sociedade heteronormativa. No meio da brincadeira teve uma hora que foi muito interessante, ela estava brincando que estava num supermercado passando as compras, as mães estavam na função de caixa do supermercado, quando ela olhou para mãe e fez ‘só um instante que já já o pai vem pagar’. É uma coisa que não é do núcleo familiar dela. Porque ela tem duas mães. Só que na brincadeira, ela reproduz um padrão de dizer que quem vai pagar a conta é o pai”, ressalta a autora da pesquisa.

“A literatura diz que isso acontece, da própria família homoparental repetir o padrão heteronormativo como forma de ajustamento. Em que o casal está tão preocupado, é uma intenção boa em não ser diferente das outras, que ele se ajusta ao padrão heteronormativo mesmo sendo um casal gay”, acentua o Elder Cerqueira.

O segundo ponto é a influência da macrocultura, da mídia, da música, da TV, da internet, que estão além do controle dos pais. Desta forma, os pais não são os únicos modelos de atuação no desenvolvimento infantil.

“Na cultura da infância, o poder que os pais têm sobre o fenômeno da infância parece ser um pouco menos do que as teorias clássicas em psicologia diziam. Parece que existe uma relação da criança com a macrocultura, o mundo, que não é totalmente filtrada pelos pais. Então as crianças aprendem as músicas, as brincadeiras, do mundo sem que os pais tenham 100% de controle de filtro. Os pais não são os únicos modelos. O que importa para nós, da psicologia do desenvolvimento, é dizer: em questões de gênero e sexualidade os pais não são os únicos modelos dessa criança”, conclui Elder.

Para saber mais

Acesse o relatório final da pesquisa no Repositório Institucional, clicando aqui.

Emerson Esteves*
Marcilio Costa (jornalista supervisor)
* Estudante de Jornalismo da UFS. Esta matéria foi desenvolvida como parte das atividades de Estágio Curricular Supervisionado do curso.


Atualizado em: Ter, 15 de outubro de 2019, 17:25
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