A poluição causada por um segmento da indústria pode ter seus impactos reduzidos a partir dos resíduos de outro impacto ambiental. Uma pesquisa da Universidade Federal de Sergipe testou um híbrido contendo amostras da lama derramada no desastre de Mariana (MG) para remediar o cromo que é descartado na indústria de couro.
O estudo rendeu à doutoranda Daiane Requião o prêmio Malcolm, comenda máxima da Sociedade Internacional de Substâncias Húmicas (IHSS). A honraria foi dada na Conferência Internacional da entidade, realizada na Bulgária em setembro passado. Ela foi a primeira brasileira a conquistar a premiação, que está na 19ª edição.
A preocupação do grupo de pesquisa de que Daiane faz parte, o Laboratório de Estudo sobre a Matéria Orgânica Natural (LEMON), é com o cromo utilizado nos curtumes (indústrias de curtimento do couro).
O Brasil tem o maior rebanho bovino comercial do mundo e grande parte das peles desses animais é usada nos segmentos moveleiro, calçadista e automotivo. Segundo dados do Centro das Indústrias de Curtumes do Brasil (CICB), o país possui cerca de 260 curtumes, cuja produção rendeu ao setor 1,8 bilhão de dólares de superávit somente em 2017, resultado da exportação de 158 milhões de metros cúbicos de couro. O levantamento mostra ainda que o couro brasileiro é exportado para 80 países, principalmente a China, a Itália e os Estados Unidos.
O problema está (também) nessa geografia. A cadeia produtiva do couro estabelece a industrialização final em países desenvolvidos, enquanto a produção inicial (com maior impacto ambiental e humano) em países subdesenvolvidos. Os maiores exportadores do mundo são China e Índia, mas Brasil e Bangladesh, por exemplo, também se destacam.
Onde entra o cromo nesse processo? No processamento do couro. O curtimento consiste em mumificar a pele, para que ele não apodreça. Há várias formas de curtir o couro, a mais comum e mais nociva é com a utilização do cromo.
Daiane nos conta que apenas 40% do cromo utilizado ficam retidos no couro. “Cerca de 60% vão para o resíduo [descartado]”, diz a pesquisadora, que observou o processo em um curtimento sergipano. O descarte na forma líquida vai geralmente para os rios, enquanto o resíduo sólido é despejado em aterros sanitários.
Esse descarte nocivo ocorre não apenas em Sergipe, mas no restante do Brasil e nos outros países. Em 2006, por exemplo, indústrias do Rio Grande do Sul – entre elas, dois curtumes – foram autuadas pelo lançamento de resíduos tóxicos no Rio dos Sinos, resultando na morte de 50 toneladas de peixes.
Às pessoas o cromo também é prejudicial, podendo causar, dependendo de como é absorvido, problemas dermatológicos, respiratórios, gástricos. Estudos recentes têm associado o cromo também a alguns tipos de cânceres.
Lama para reduzir o cromo
Quando Daiane e suas orientadoras decidiram criar um produto híbrido para eliminação ou redução do cromo em efluentes industriais, a ideia era utilizar uma substância comercial adotada por empresas de tratamento de água. Até que tiveram a ideia de testar amostras da lama decorrente do desastre de Mariana, que é rica em ferro.
“Existem tratamentos [para reduzir o cromo dos resíduos dos curtumes], mas eles demandam energia, outros reagentes químicos. Então a ideia do projeto era utilizar o ferro de diversas fontes (como o ferro da lama de Mariana, que era de uma mineradora de ferro)”, explica Luciane Cruz Romão, orientadora de Daiane no doutorado – ela havia orientado a aluna também no mestrado.
O híbrido produzido por elas não apenas removeu o cromo, como ainda foi reutilizado em outros cinco ciclos, obtendo o mesmo êxito. “Depois que ele diminuiu a capacidade de remover o cromo, esse material ainda foi reutilizado na remediação (como catalisador) de outro poluente, o nitrofenol”, completa Luciane.
O objetivo não é necessariamente o uso da lama da tragédia de Mariana para a eliminação do cromo. O ideal é que as mineradoras de ferro evitem ou reduzam o acúmulo de resíduos em barragens, gerando um produto que tenha outros usos – como neste caso, para reduzir poluentes de outro ramo industrial. Isto reduziria também, claro, o risco de outros desastres como o de Mariana.
É o que explica a coorientadora de Daiane, Graziele Cunha, bolsista de pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em Química. “Fora a questão do gasto de construir uma barragem, o impacto, o monitoramento... o objetivo é evitar que elas precisem ser construídas. É um subproduto que não tem valor econômico, a gente quer dar valor econômico para esse material”, disserta.
Luciane destaca também que só haverá uma preocupação sobre os resíduos da mineração se eles passarem a ter um valor econômico. “A questão ambiental só vai ser resolvida e só vai ser pensada, no meu ponto de vista, de maneira realmente eficaz, quando se der um valor agregado e econômico aos materiais que são gerados”, pontua.
Daiane explica que o híbrido utilizado na remoção do cromo é composto por cobalto, um reagente analítico e água rica em material orgânico, que foi coletada na serra de Itabaiana. “[Tem-se] aí outro destaque: usamos água como solvente, em vez de outros solventes orgânicos, que são tóxicos”, ressalta a doutoranda.
O couro e a indústria da moda
O documentário ‘O valor real’ (‘The True Cost’, disponível na Netflix) denuncia a cadeia produtiva da indústria da moda, que se utiliza do trabalho escravo ou semi-escravo e da industrialização predatória ao meio ambiente para gerar lucro mesmo praticando preços baixos no produto final. Um dos entrevistados denuncia a poluição do rio Ganges, em Kanpur, na Índia.
Os sapatos são o maior mercado para o couro, avaliado em US$ 47 bilhões, mais de 60% do total das negociações mundiais entre 2009 e 2010.
Os dados das exportações do couro brasileiro mostram que os países importadores são justamente aqueles que detêm as principais indústrias de roupa e calçados: EUA e Itália. Aparece em destaque também a China, onde muitas empresas atuam como terceirizadas das grandes marcas europeias e norte-americanas.
A professora Luciane Romão avalia que a correlação de poderes políticos e econômicos entre os países determina a cadeia produtiva do couro. “O primeiro mundo não vai querer uma indústria de curtimento de couro. Onde é que elas estão? Nos países subdesenvolvidos. Então você vai achar no Brasil, em Bangladesh, na Índia”, expõe. “Por que estão nesses países? Porque é mão de obra barata e porque a questão ambiental não é obedecida, não é vista, não tem regulação, não tem cuidado. Então você tem uma questão econômica, uma questão social e uma questão ambiental”, arremata.
A tragédia de Mariana
Em novembro de 2015 ocorreu o rompimento de uma barragem da mineradora Samarco, que é controlada pela Vale e pela PHP Billiton. É considerado o pior acidente da mineração brasileira.
O rompimento provocou uma enxurrada de lama e deixou um rastro de destruição pelo leito do Rio Doce – irônica e tragicamente, que dava nome à Vale antes de sua privatização. Além da morte e desabrigo de pessoas e do prejuízo ao abastecimento de água de cidades inteiras, o desastre provocou sérios impactos ambientais, incalculáveis e, provavelmente, irreversíveis.
O acidente liberou cerca de 62 milhões de metros cúbicos de rejeitos de mineração, que eram formados, principalmente, por óxido de ferro, água e lama. O material não é tóxico, portanto não apresenta risco à saúde humana. Porém, acarretou em danos ao solo, rios e fauna.
Pesquisa premiada
Daiane Requião já havia conquistado, em 2016, o 9º Prêmio João Ribeiro de Divulgação Científica e Inovação Tecnológica, concedido pela Fapitec (Fundação de Apoio à Pesquisa e à Inovação Tecnológica do Estado de Sergipe).
Para saber mais
O trabalho de Daiane, inscrito na Conferência Internacional da IHSS, pode ser acessado no link abaixo (em inglês).
Marcilio Costa
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