“Numa sociedade em que todo mundo se sente na obrigação de ser aceito e feliz, existem inúmeras formas de esconder a tristeza e a falta de perspectiva diante de um padrão socialmente pré-estabelecido. Comigo, foi em roupas bacanas, em presença constante nas festas e shows, na iniciativa de chamar os amigos para sair, na postura de ser o líder do grupo e, assim, ser notado e aceito pelos demais. Dava risada quando me diziam que eu era um ‘gordinho gostoso’, mas, no fundo, eu sentia mesmo era vergonha de ter chegado ali, naquela situação em que não me reconhecia e que, na verdade, não tinha nada de bonita. Ser gordo não é bonito. Ser gordo é ver o definhamento da sua qualidade de vida, que, por mais que digam estar atrelada à saúde, é baseada mesmo na estética”.
A declaração do produtor de eventos Adriano Vasconcelos, 35, que, em 2017, após ter chegado aos 160 kg, foi submetido a uma cirurgia bariátrica, chama a atenção para a realidade de um a cada cinco brasileiros. É que, segundo dados do Ministério da Saúde (MS), 19% da população nacional atingiu a chamada obesidade mórbida, uma doença metabólica crônica de alta prevalência, identificada pelo Índice de Massa Corporal (IMC) igual ou superior a 40 kg/m², ou ainda acima de 35 kg/m², desde que associado a comorbidades de alterações metabólicas, tais como cardiopatias, hipertensão, diabetes melittus tipo 2, displidemias, dentre outras.
O número, considerado alto pela Organização Mundial da Saúde (OMS), toma proporções ainda maiores quando dados do MS mostram também que o Brasil lidera o número de cirurgias plásticas em todo o mundo e ocupa a primeira posição da América Latina no que se refere às cirurgias bariátricas realizadas anualmente, sendo ainda o país com o maior número de cirurgiões do sistema digestivo do mundo.
“É claro que a obesidade mórbida é uma questão de saúde, mas seria hipocrisia afirmar que procuramos orientação médica apenas por isso. A questão estética pesa muito e não é só em relação ao espelho, mas ao próprio meio social. Muitas vezes, não cabemos em assentos de ônibus ou de aviões, não existem banheiros apropriados, dentre muitas outras coisas simples do cotidiano, e isso fere a autoestima de qualquer um. Essa noção fica muito mais evidente após a cirurgia bariátrica, pois passamos a fazer coisas e a frequentar lugares que não conseguíamos quando estávamos naquela realidade”, explica Adriano.
A cirurgia bariátrica teria melhorado, então, a qualidade de vida desses pacientes no seu pós-operatório? Eles voltariam a ganhar peso? Manteriam o acompanhamento? Foram essas as pergunta que nortearam a dissertação da estudante Larissa Monteiro Costa, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação Física da Universidade Federal de Sergipe (PPGED). Ela fez um estudo retrospectivo dos dez anos de cirurgias bariátricas realizadas no Hospital Universitário (HU), um dos centros de referência nacional do SUS, sobre os fatores de risco cardiometabólicos, atividade física e qualidade de vida dos pacientes.
“Eu já havia trabalhado com esse grupo de pacientes antes do mestrado e percebia que, após a cirurgia, por mais que houvesse um acompanhamento multiprofissional, não havia uma catalogação do que acontecia em relação à manutenção da atividade física e da qualidade de vida deles. Assim, resolvi verificar isso ao longo de um ano, com pacientes que haviam sido operados recentemente e com aqueles que se submeteram à cirurgia logo no início da sua realização no HU, em 2007”, explica Larissa.
Ela conta ainda que, antes de o paciente ser submetido à cirurgia, ele passa por todo um protocolo, acompanhamento multiprofissional do qual faz parte não só o cirurgião, mas endocrinologista, odontólogo, educador físico, nutricionista, psicólogo, assistente social, dentre outros, não sendo a intervenção cirúrgica algo imediato.
Dessa forma, a pesquisadora fez o levantamento do prontuário de 78 pacientes aptos (com mais de um ano de pós-operatório) dentro do ambulatório do HU e os dividiu em quatro grupos a fim de estabelecer uma relação entre o tempo do pós-operatório e a qualidade de vida e nível de atividade física desses indivíduos: 12 deles entre 1 e 2 anos de cirurgia bariátrica (CB2); 14 entre 2 e 4 anos de pós-operatório (CB4); 22 entre 4 e 6 anos de CB (CB6) e 30 entre 6 e 10 anos de CB (CB+6).
Para cada grupo, foram avaliados peso, IMC, percentual de excesso de peso, indicadores bioquímicos, comorbidades associadas à obesidade, nível de atividade física aferido através do International Physical Activity Questionnaire (IPAQ) e a qualidade de vida dos pacientes.
De uma forma geral, Larissa explica que esses pacientes chegam ao HU apresentando um cenário de sedentarismo, de problemas com questões nutricionais, além de comorbidades, como hipertensão e diabetes, e das várias questões associadas a uma vida social muito pouco estabelecida, pois os vínculos afetivos acabam se enfraquecendo com o avanço da doença.
“Durante os doze meses de avaliação desses quatro grupos de pacientes, pode-se perceber uma melhora significativa em relação à qualidade de vida e aos números do peso corporal, IMC, circunferência da cintura e diversas das comorbidades apresentadas. Além disso, os pacientes apresentaram maior propensão às atividades físicas, relatando benefícios para suas relações sociais e afetivas”, salienta a pesquisadora.
Segundo a pesquisa de Larissa, mesmo com o tempo os pacientes mantêm a perda de peso. No caso do índice de Perda de Excesso de Peso, por exemplo, o grupo CB6 (4 a 6 anos após a cirurgia) é o que demonstra maior percentual de redução (ver infográfico).
Os estudos mostraram ainda que o nível de atividade física aumentou significativamente após o primeiro ano de pós-operatório, tendo sua frequência reduzida com o passar dos anos, mas associada a alguma outra atividade social que possibilite a manutenção do peso saudável do paciente.
“É muito natural que meses após a cirurgia, quando já estão liberados pela equipe médica, os pacientes intensifiquem sua rotina de exercícios físicos e passe boa parte do tempo pensando neles, pois estão redescobrindo o próprio corpo. Essa euforia, conforme verificada na pesquisa, dura, em média, um ano, um ano e meio, e vai diminuindo gradativamente com o passar do tempo, mas isso não indica necessariamente que esse paciente deixou de se cuidar. Ele apenas manteve sua rotina de forma mais equilibrada, digamos assim”, ressalta Larissa.
Essa fase inicial tem motivado Adriano a um estilo de vida que ele considera ainda melhor que o anterior à obesidade. “Aos 25 anos, eu tinha 83kg e não era muito ativo. Dez anos depois, precisei chegar aos 160 kg, fazer a cirurgia bariátrica e entender que o corpo, para funcionar bem, precisa de uma rotina equilibrada, de exercícios e de teste. Nunca pensei que a atividade física fosse me fazer tão bem e me despertar para outras perspectivas na minha vida. É gratificante ter de volta a disposição e o movimento do corpo”, disse o produtor de eventos.
Oito anos após a cirurgia bariátrica, a contadora L.N.S* , 42, não tem mais a euforia de Adriano, mas diz se exercitar regularmente e ter sentido uma melhora significativa em sua qualidade de vida após a cirurgia.
“O exercício, de fato, vicia. Principalmente nesse momento inicial em que você quer se ver magra, quer ir aos lugares que deixou de frequentar há alguns anos, quer sair, ver gente, se sentir bonita. Mas, depois, percebe que existe vida igualmente prazerosa e saudável fora da academia. Hoje, pedalo com os meus filhos, caminho, corro ao ar livre e tenho uma alimentação saudável. No auge da minha obesidade, cheguei a pesar 121 kg e, atualmente, estou com 68 kg, mas já cheguei aos 63 kg dois anos após a cirurgia”, diz a contadora.
O professor do Departamento de Fisioterapia da UFS e orientador da pesquisa de Larissa, Walderi Monteiro da Silva Júnior, salienta a importância da pesquisa desenvolvida por Larissa.
“Os estudos apresentados dão conta de uma atividade inédita, uma vez que leva em consideração todo o histórico das cirurgias bariátricas realizadas ao longo dos dez anos no Hospital Universitário. Assim, os dados mostram claramente que, após a cirurgia, se o paciente seguir todo o protocolo da equipe multiprofissional, ele terá uma melhor qualidade de vida e, consequentemente, terá mais prazer em desenvolver suas atividades nos mais variados âmbitos. Não se trata apenas de ser submetido à cirurgia, mas de fazer o acompanhamento e de entender que, para manter aquele corpo e a nova reabsorção dos nutrientes, será necessário um novo estilo de vida, que só lhe trará benefícios”, diz o professor.
HU-UFS – Centro de referência
Em maio de 2017, o Hospital Universitário realizou a sua 100ª cirurgia bariátrica, sendo considerado modelo de excelência no Sistema único de Saúde (SUS) em todo o país. No estado de Sergipe, ele é o único hospital público que realiza o procedimento.
Quando havia tomado a decisão pela cirurgia, o produtor de eventos Adriano Vasconcelos não sabia dessa informação e juntou a quantia necessária na época para fazer a cirurgia na rede privada de saúde.
“Eu tinha certo preconceito em buscar as informações do SUS, pois, diante de tantos casos noticiados pela imprensa, a gente acaba ficando com a ideia de que o serviço de saúde pública é incapaz de oferecer a mesma estrutura e os mesmos resultados que o privado, mas um amigo me orientou e me disse que o mesmo médico que me atenderia na rede particular também fazia a cirurgia no HU. Resolvi fazer a primeira consulta e, depois de dois anos e meio cumprindo os protocolos, estava eu sendo operado na rede pública. Ainda guardo todas as marcações das consultas e, de certa forma, até me sinto um pouco envergonhado por ter duvidado da excelência do hospital”, diz Adriano.
O que parece demora, para alguns, é certificado de cautela para a equipe e para o paciente.
“Não é porque o paciente é diagnosticado com obesidade mórbida que ele será levado ao centro cirúrgico imediatamente. Como foi explicado, existe uma avaliação multiprofissional, um protocolo a ser cumprido e uma portaria do Ministério da Saúde. Tudo isso tem que ser respeitado, pois é para a segurança do paciente. Dentre várias exigências, é preciso que haja redução em, no mínimo, 20% do peso corpóreo para a cirurgia, por exemplo, e muitos não querem esperar, procurando atendimento privado”, diz Larissa Monteiro.
Como e quem procurar?
De forma geral, o paciente é identificado com obesidade mórbida pelo seu médico endocrinologista, que o encaminha ao Programa de Combate à Obesidade do HU-UFS. Avaliados o IMC e as comorbidades do paciente, ele dará início ao tratamento para a perda de peso e, assim, para os enquadramentos pré-cirúrgicos.
Diagnosticados todos os pré-requisitos, o paciente é então submetido à cirurgia bariátrica e, posteriormente, continua tendo acompanhamento multiprofissional no HU-UFS, tendo seus medicamentos fornecidos gratuitamente pelo Centro de Atendimento à Saúde de Sergipe (Case), localizado, vinculado à Secretaria de Estado da Saúde (SES).
“Todas as necessidades pré e pós-cirúrgicas do paciente são avaliadas e atendidas gratuitamente pelo SUS”, informa Larissa Monteiro.
* O nome da entrevistada não foi divulgado, a pedido dela, para preservar a sua identidade.
Jéssica Vieira
comunica@ufs.br