Nas primeiras décadas do século XX, o trem era o principal meio de transporte de massa em Sergipe. Em um trecho da ferrovia entre as cidades de Laranjeiras e Riachuelo, dezenas de pessoas morreram em um desastre que comoveu o país - jornais chegaram a falar em centenas de vítimas fatais. O desfecho da investigação sobre o acidente, porém, deixou dúvidas sobre as causas e a condenação, que transformou em drama a vida de João Claro dos Santos.
O pesquisador Luiz Paulo Bezerra estudou o processo-crime do caso, combinado a fontes bibliográficas, para entender o que aconteceu no acidente que é considerado a maior tragédia ferroviária do Brasil. A pesquisa resultou na dissertação que Luiz apresentou ao Mestrado em História da Universidade Federal de Sergipe (UFS), orientado pelo professor Petrônio José Domingues.
No ano do ocorrido, 1946, o transporte de passageiros nas rodovias ainda era tímido. Era principalmente pelas ferrovias que se locomoviam pessoas e se transportavam mercadorias. Apelidado de Suburbano, o trem da empresa Viação Férrea Federal Leste Brasileiro percorria a principal linha de Sergipe: saía da capital, Aracaju, em direção ao norte do estado, passando por Laranjeiras e Riachuelo, concluindo o percurso em Capela.
Com capacidade para 240 passageiros sentados, o Suburbano saía sempre lotado da estação ferroviária da capital, no bairro Siqueira Campos. Segundo a empresa férrea, 246 pessoas compraram bilhetes no dia da tragédia, distribuídas na primeira e segunda classes.
No entanto, informações recuperadas por Luiz Paulo no processo judicial indicam que havia bem mais do que 246 passageiros naquela viagem. Nos depoimentos, todos os viajantes ouvidos pela polícia confirmaram a superlotação.
Um funcionário do Suburbano, João Félix, relatou que a quantidade de passageiros era “fora do comum”. “Razão pela qual os passageiros iam se apinhando por toda parte”*, diz o depoimento de João, que era o guarda-freio do trem, profissional responsável pela supervisão e acionamento dos freios de veículos ferroviários.
O viajante Benício Vieira narrou aos investigadores que foi obrigado a procurar um lugar entre o amontoado de pessoas e mercadorias. Manoel dos Santos, outro passageiro, viajava em pé em um dos vagões “num aperto medonho”, segundo seu depoimento no processo. A “enchente de pessôas era incalculável”, completa sua fala à polícia.
Jornais da época, encontrados por Luiz Paulo em sua pesquisa, apontavam que a superlotação nas ferrovias sergipanas era corriqueira. É o que mostra uma manchete do Diário de Sergipe, de 19 de agosto de 1946: “Socorro e Laranjeiras não se passaram nada de anormal a registrar-se. As classes superlotadas, os passageiros reclamando, tudo na forma do costume”.
Depois de passar por Laranjeiras, em caminho a Riachuelo, o Suburbano tem dificuldade para subir uma ladeira, segundo relatos de passageiros. O maquinista, então, para o trem, tenta nova arrancada e ultrapassa a subida, iniciando uma descida em alta velocidade, também confirmada pelos depoimentos - o soldado João Batista dos Santos, que viajava no Suburbano, “ouviu dizer” que “o maquinista dissera que iria tirar o atrazo, e assim parecia porque após a subida, o trem parecia um motociclo a toda velocidade”.
Momentos depois, ouve-se o barulho de uma das composições do Suburbano saindo dos trilhos, causando um engavetamento dos três vagões da composição. Em poucos segundos, a viagem se transforma em uma tragédia: dezenas de mortos e feridos, desespero, incredulidade.
A tragédia
Já havia anoitecido naquele 28 de março de 1946, quando ocorreu o acidente. O local da tragédia, o povoado Pedrinhas, se transformou em um cenário de dor e desolação. Pessoas mortas, mutiladas, feridas, sobreviventes desesperados.
É o caso do ajudante de caminhão Manoel Ferreira dos Santos, 19 anos de idade, que viajou em pé, na segunda classe. Ele ficou preso aos destroços até a chegada do salvamento - que não demorou, segundo testemunhas, apesar do difícil acesso e da escuridão.
Outro sobrevivente narrou seu tormento ao Sergipe-Jornal, sob anonimato. “Ouvi gritos de toda a parte, lamentos femininos e masculinos, choro de crianças, soluços profundos, e senti a primeira classe virando comigo, se fazendo em pedaços”, relatou.
Os muitos feridos foram levados a hospitais da região, de acordo com a gravidade das lesões. No entanto, Luiz Paulo não conseguiu recuperar os dados a respeito dos sobreviventes e possíveis óbitos resultantes do desastre. O fato contribui para dificultar a precisão no número de mortos.
“Fomos atrás dos próprios laudos médicos emitidos pelo hospital, mas, infelizmente, não conseguimos encontrar, o que nos preocupa. Tal material nos forneceria informações fundamentais sobre as gravidades dos ferimentos”, relata o pesquisador em seu trabalho. Ele visitou os hospitais Cirurgia e Santa Isabel, além do pequeno centro hospitalar de Riachuelo.
A quantidade de mortos e feridos era tão grande, que médicos e enfermeiros foram sobrecarregados, segundo o relato da polícia. Foram contabilizados naquele momento 30 mortos identificados e outros 13 não identificados. Quanto aos feridos, 53 foram avaliados pelos médicos, sendo 16 em estado muito grave.
A imprensa do Rio de Janeiro - então capital do Brasil - noticiava cerca de 200 mortos. Já os jornais de Sergipe, em sua maioria, atinham-se aos dados oficiais - o Sergipe-Jornal, porém, chegou a noticiar 120 mortos, com a possibilidade ainda de haver outros 60 sob os escombros.
Luiz Paulo não conseguiu recuperar informações que esclarecessem o caso. Mas acredita que os números sejam mesmo superiores aos oficiais, ainda que não alcancem os exorbitantes 200 mortos e 300 feridos noticiados pela imprensa fluminense.
“[De acordo com as fontes pesquisadas,] dá para entender que muitas pessoas que morreram no local foram levadas para outros locais para serem enterradas e não foram contabilizadas. Tudo indica que foram acima dos dados oficiais”, admite.
O desespero após o acidente foi também o início do drama de João Claro dos Santos, o maquinista da locomotiva. Naquele cenário de tumulto, sobreviventes tentaram linchar o condutor do trem, que fugiu para Laranjeiras, onde, por medo, se apresentou à polícia da cidade.
Enquanto isso, a perícia iniciava seu trabalho no povoado Pedrinhas. Três engenheiros realizaram a perícia técnica, enquanto a polícia investigava o ocorrido, colhendo depoimentos dos sobreviventes.
As investigações
As perícias e a apuração do caso caminharam junto à atuação da imprensa. Com uma postura sensacionalista, os jornais impressos cobravam pressa para que se chegasse a um responsável. Ao mesmo tempo em que exigiam das autoridades uma solução, os jornais - de Sergipe e do Rio de Janeiro - já tratavam João Claro como culpado pela tragédia.
A perícia realizada pelos engenheiros indicou que a linha férrea naquele trecho estava em perfeito estado de conservação. E concluiu que “a aplicação brusca de freios num momento em que a composição desenvolvia velocidade superior a admissível no trecho em que se deu o acidente”, segundo consta nos autos.
Por outro lado, a perícia identificou que a única pastilha de freios encontrada nos destroços do Suburbano estava desgastada. As demais pastilhas poderiam ter sido reutilizadas em outras máquinas, prática aparentemente costumeira.
Em seu depoimento, João Claro denunciou a superlotação do Suburbano, ocorrida, segundo ele, por uma invasão aos vagões. Afirma ainda que chamou a atenção do chefe de trem, Edgar Simas, sobre o excesso de passageiros.
O chefe acionou um policial que conseguiu fazer descer os passageiros excedentes. Porém, segundo o maquinista, a medida não funcionou, já que com o trem em movimento, ocorreu nova invasão. Outra vez, João Claro denunciou ao chefe de trem, mas nenhuma providência foi tomada.
O maquinista relatou ainda que a parada que antecedeu a subida de uma ladeira e posterior descida em velocidade foi motivada por um problema na última classe, que precisou de reparo - o conserto foi feito pelo funcionário do trem responsável pela tarefa, o foguista.
Após iniciar a descida, outra vez o maquinista percebe o mesmo problema, a interrupção da torneira de ar, causando o isolamento dos freios de ar comprimido. João Claro acusa a superlotação como causa para o problema, já que os passageiros que viajavam em pé podiam ter provocado a obstrução.
Em depoimento, o maquinista auxiliar João Moura Cabral confirma o relato de Claro. Ele conta que em certo momento da viagem notou que a torneira da bomba de ar achava-se aberta, fechando-o logo em seguida. Outro maquinista presente no Suburbano, Manoel Leite da Silva, também testemunha essas informações.
Por fim, em seu depoimento João Claro assegura que a impossibilidade de controlar a velocidade da locomotiva e a existência de muitas pedras nos trilhos após uma curva provocaram o descarrilamento.
Em uma nova perícia realizada pelos mesmos engenheiros, a pedido e sob o acompanhamento dos advogados de Claro, percebeu-se que a locomotiva não possuía nenhuma baliza de freios, comprometendo certamente a qualidade da frenagem - considerando a quantidade e o peso dos vagões.
O relatório policial chegou a ponderar que não foram “encontrados nos autos provas suficientes para criminar dolosa ou culposamente o maquinista”. Apesar disso, o próprio relatório determina a investigação da vida pregressa do maquinista.
Um comunista nos trilhos
João Claro tinha 37 anos na data do acidente. Casado, morava com a família no bairro Siqueira Campos, em Aracaju. Era negro, o que no ano de 1946 significava ainda mais do que hoje.
Começou a trabalhar aos 13 anos na oficina da Viação Férrea como aprendiz de ajustador mecânico, sem receber nenhum salário durante o primeiro ano. Progrediu nos quadros da empresa até receber a formação de maquinista, em 1936, dez anos antes da tragédia de Pedrinhas.
Além de fundador da União Espírita Sergipana, João Claro foi o presidente da União Beneficente dos Ferroviários, uma espécie de sindicato dos funcionários da Viação Férrea. Sua atuação política junto aos trabalhadores e outros setores sociais o levou a ser eleito vereador de Aracaju pelo Partido Comunista.
Apesar da investigação sobre a vida do maquinista, nada foi encontrado que comprometesse sua reputação.
Por outro lado, diversos fatores contribuíram para o desastre. A Viação Férrea Federal Leste Brasileiro poderia ter sido melhor investigada por causa da situação em que se encontravam seus veículos, assim como pela superlotação do Suburbano.
Segundo os relatos da imprensa, os trilhos também não apresentavam condições adequadas, fator que talvez não influenciasse no processo por conta da conclusão do laudo pericial - que garantiu estar em bom estado pelo menos o trecho onde ocorreu o acidente. Mas o poder público também devia ser investigado, entre os responsabilizados pela tragédia, pois o controle da superlotação a partir da estação ferroviária de Aracaju era tarefa dos agentes públicos.
No entanto, apesar de os indícios apontarem múltiplas responsabilidades, João Claro foi o único condenado no processo criminal. A Promotoria da cidade de Laranjeiras denunciou João Claro como causador do “horrôroso desastre”, sendo o processo encaminhado para a Comarca de Aracaju.
Embora seja conhecida a condenação de João Claro, o pesquisador Luiz Paulo não conseguiu incluir a sentença em seu trabalho, pois o documento havia sido retirado do processo-crime.
Este não foi o único desaparecimento de documento sobre o caso. O historiador denuncia que, após ter defendido sua dissertação, voltou ao Arquivo Judiciário para colher mais informações e, para sua surpresa, o próprio processo-crime havia desaparecido. “Não está mais na pasta em que eu pesquisei”, afirma.
“Algumas partes do processo você não conseguia encontrar”, completa Luiz. O historiador especula que, talvez pela repercussão que o caso teve, algumas pessoas ou setores prefiram que a conclusão do processo não seja evidenciada.
Racismo
Luiz Paulo Bezerra foca suas pesquisas na história pós-abolicionista do povo negro no Brasil - período que sucedeu a libertação dos negros escravizados, que ocorreu em 1888. Ele acredita que o racismo foi preponderante para a condenação de João Claro.
“O protagonismo negro, ser negro naquela época, levava ainda dificuldade para pessoas que tentavam ultrapassar certos limites; João Claro foi um desses”, explica Luiz, “um personagem importante para a história de Sergipe, no sentido do que um negro poderia na década de 1940”.
A pressão dos jornais e a pressa da população, por se encontrar um responsável pelo desastre, foram fatores que, combinados com o racismo, levaram o maquinista a ser o “condenado conveniente”, acredita o historiador. “Um negro, comunista, líder de centro espírita… de repente podia incomodar”, considera Luiz.
Outro obstáculo para preencher algumas lacunas na pesquisa foi a impossibilidade de conversar com familiares de João Claro.
“Não consegui ter acesso à família”, diz. “Possivelmente pela repercussão negativa, porque, imagine: um negro, na década de 1940, que conseguiu ter acesso a coisas que dificilmente conseguiria ter… e de repente tem sua vida destruída por causa de um acidente…”, reflete o pesquisador, sugerindo a possibilidade de haver um sentimento, por parte dos descendentes de Claro, de ter havido injustiça na condenação.
O cientista compara o caso de João Claro ao chamado “crime do restaurante chinês”, que aconteceu em São Paulo na década de 1930. Um casal de chineses, donos de um restaurante, e dois funcionários foram brutalmente assassinados. Um ex-garçom foi condenado pelos homicídios. O historiador Boris Fausto publicou um livro sobre o massacre, também analisando o processo-crime e a atuação da imprensa.
Para Luiz, quando as evidências são nebulosas, existe uma tendência – que pode ser reforçada pelos meios de comunicação – de condenar aqueles personagens já censurados pela própria sociedade.
Rua Vereador João Claro
Desde 1954, ou seja, quase dez anos após o acidente, a rua Sergipe, no bairro Siqueira Campos, passou a se chamar Rua Vereador João Claro. É o endereço do Centro Espírita Irmãos Fêgo, na época comandada por Claro e que continua em atividade.
Para o historiador Luiz Paulo, a homenagem é mais um indício da inocência do maquinista. “Não seria nada ético e bem visto pela população uma rua ser denominada em nome de um criminoso que causou tantas mortes”, reflete.
Para saber mais
A dissertação intitulada “Nos trilhos da morte: tragédia ferroviária, debate judicial e racismo em Sergipe nos anos 40” pode ser acessada, na íntegra, no Repositório Institucional da UFS, clicando aqui.
* As falas dos personagens da tragédia foram transcritas como constam nos autos do processo, inclusive com a grafia da época.
Marcilio Costa
Ascom/UFS
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