Quando escreveu O Hobbit, Tolkien não sabia que seu primeiro livro sobre esses seres seria a introdução da obra que mudaria para sempre a história da literatura fantástica no mundo. Alegórico, altamente descritivo e atravessado por inúmeros discursos, O Senhor dos Anéis – sequência de O Hobbit – representa um marco editorial: vendeu inúmeras cópias, formou leitores e teve seu universo expandido e cinematografado pelo diretor Peter Jackson, a partir de 2001.
Como Tolkien não tinha noção de que seu texto significaria tanto para ele, Nicaelle Viturino não imaginava que um texto de uma disciplina do curso de Letras a colocaria frente a frente com um dos trabalhos que mais teve prazer e orgulho de realizar: analisar os discursos que Jackson criou, através da obra do Tolkien, nas telas de cinema do mundo inteiro.
“Pessoalmente, quando olho para o trabalho, penso que é algo grande, mas que ainda precisa de muito porque existem tantas outras possibilidades de sentidos; é incessante e apaixonante”, conta, ao relembrar a trajetória para escrever sua dissertação ‘O Senhor dos Anéis: a sociedade do anel: entre os mitos e as relações de poder/saber’.
Nicaelle se formou no curso de Letras pela Universidade Federal de Sergipe. Quando decidiu que gostaria de continuar sua formação e ingressar no mestrado, resolveu revisitar sua graduação. Junto a Maria Emília, professora que marcou sua vida acadêmica, decidiu que continuaria a trabalhar com o que já gostava: análise do discurso. A escolha da obra cinematográfica que serviria de análise para o trabalho não foi difícil.
“Depois que terminei meu trabalho de conclusão do curso fiquei um pouco perdida e recorri à professora Emília. Como minha passagem da graduação para o mestrado foi rápida, resolvemos que continuaríamos o trabalho que havíamos iniciado com O Senhor dos Anéis”.
Mítico e perpassado por discursos adversos, o primeiro filme da trilogia se tornou um campo fértil nas mãos de Nicaelle e Emília. “O trabalho de análise de discurso é extremamente extenso e se você muda a materialidade, mudam os discursos também. À medida que esse filme volta à tela constantemente, há movência de novos sentidos. Isso promove uma grande circulação de discursos, por isso a gente se debruçou nesse filme”, diz Emília.
Ao longo das mais de duas horas de narrativa fílmica, inúmeros discursos são construídos na tela através da odisseia empreendida por Frodo. O hobbit precisa manter seguro um anel que tem o poder de mudar mundos, promover guerras e dar, a quem o pertence, a capacidade de controlar todos os povos.
O discurso e o poder
Nicaelle, ao se debruçar sobre a obra, teve à sua frente inúmeras possibilidades e caminhos para percorrer. Todos a levariam a um único objetivo e destino: entender cada um desses discursos e de que maneiras eles são representados para o público na materialidade fílmica.
Materialidade esta que não se restringe apenas a lingüística, como conta Marília Emília. “A análise do discurso não se interessa só pela materialidade lingüística, mas qualquer uma”.
Mas a centralidade dos discursos empreendidos parece estar certeiramente incutida no que se mostra como a imagética mais forte da obra: o anel. Baseada na teoria Foucaultiana (de Michel Foucault, filósofo francês), Nicaelle encontrou uma explicação representativamente forte para o objeto que dá nome à trilogia.
“O anel é a figuratização do próprio discurso, porque Foucault diz que o discurso é aquilo que todos querem se apoderar, e o anel é esse objeto. Independente do motivo pelo qual se quer, todos querem”, diz ela.
Outro discurso forte e emblemático incutido no objeto é exposto por Emília. “Toda a relação entre o bem e o mal está ali sinalizada como sendo o anel do poder, no sentido de destruir para fazer bem a uma determinada facção de personagens. Digamos assim: é a figurativização, a corporeificação da relação bem/mal”
O controverso objeto é, de fato, a espinha dorsal que move toda a narrativa. Sua representação abriria possibilidades de análise que surpreenderia Nicaelle ao longo de toda escrita de dissertação.
“Outra possibilidade que vimos é de que o anel tudo sabe, tudo vê, a partir dele tudo acontece. Quem é que tudo sabe e tudo vê no mito religioso?”, pergunta.
A retórica do questionamento é um dos discursos apontados por ela em sua pesquisa: a influência e o atravessamento de discursos religiosos, alegoricamente incutidos ao longo de toda a história.
Ressignificando mitos
Embora aparentemente óbvia, a resposta para a pergunta de Nicaelle é mais profunda e complexa. São várias as possibilidades de análise e os resultados da autora não definem ou restringem a construção e ressignificação dos mitos na adaptação da obra de Tolkien: o anel como o poder, Frodo como Jesus Cristo – abnegado a favor de um bem maior –, Galadriel figuratizando Maria, entre tantos outros.
“No meu trabalho falo justamente sobre isso [discurso religioso e influências], sobre as leituras que ele já tinha feito e as influências, e tudo isso é a base para a constituição do discurso que ele traz. Claro que é uma releitura porque já passa por outras mãos, o tradutor, o diretor do filme, tudo isso conta também para a análise, mas sinalizamos para determinadas tendências e uma delas é esse discurso religioso”, afirma Nicaelle.
Esse discurso religioso apontado por Nicaelle centraliza também uma figura importante na obra de Tolkien: a mulher. “Há uma santificação das mulheres no filme e na história e aí temos a presença da mulher na vida do próprio autor”, comenta Emília. “Se você observar bem, há momentos no filme em que a imagem de Maria está ali, colocada. Vemos muito isso na presença e na imagem de alguns elfas”.
Nicaelle afirma que Galadriel ilustra bem a construção desse discurso no filme. “A gente vê que ela é a elfa que salva Frodo, que abre mão de parte do poder e da imortalidade para que ele vivesse e cumprisse sua jornada. Há um trecho no filme que Galadriel fala sobre como conseguiu passar ilesa por algumas tentações. O anel chama por ela e ela consegue se afastar dessa tentação. Tal qual Maria, ela abnega para ser pura, santa”, conta.
Esses discursos religiosos atravessam toda a obra de Tolkien e foram também levados às telas do cinema. Frodo, personagem central da narrativa ficcional, é claramente apontado como Jesus Cristo na dissertação de Nicaelle.
“Frodo abre mão do Condado e da convivência com os amigos em prol de um bem maior: a salvação, o paraíso. Vemos que esse discurso é disseminado e assimilado facilmente por todos, por que o que nós buscamos? Paz, sossego...”, diz.
Porém, não são apenas os mitos e alegorias religiosas que fazem parte dos discursos encontrados e apontados por Nicaelle. Aliás, a primeira abordagem dela seguiu por um caminho mais específico: pensar a vigilância e o controle no enredo que se desdobra em magia, amizade e guerras épicas em um mundo paralelo, a Terra Média.
A vigilância e o controle
Na Montanha da Perdição não vivia um hobbit, mas vivia o poder. Vivia o controle. Ambos desenhados metaforicamente pela representação de um Olho: tudo via, tudo controlava, tudo possuía. Menos o anel – ou tal história teria certa incapacidade de acontecer.
Os discursos de vigilância e poder perpassam a história de maneira ora sutis, ora bastante evidentes. E vão desde o contrato tácito entre a obra e o espectador (que pode reconhecer esses discursos de modos subversivos) até a literalidade das cenas filmadas e do próprio roteiro.
“Toda vez que revemos o filme temos um insight novo sobre essa questão da vigilância e do poder, mas partimos inicialmente da questão do Olho, que está na Montanha da Perdição, que tudo vê, vigia e controla através da força do anel”, conta Nicaelle.
Essa significação do controle e da vigilância aparece em vários momentos: nos diálogos dos personagens, na falta deles, na hierarquização na cadeia de personagens e na própria opção de filmagem do diretor.
“Vemos que há certo controle do discurso em muitas partes do filme. Por exemplo, em uma das cenas em que o Gandalf [mago] está atravessando uma caverna, ele diz: não fale isso aqui, é proibido porque vai despertar o monstro das trevas. Não é um controle apenas da ação imediata, é um controle que perpassa tudo, em momentos distintos”, conta Nicaelle.
O Olho, famoso por sua indefinição corpórea, é comparado por Maria Emília com o Panóptico, de Foucault. Em Vigiar e Punir o autor descreve uma estrutura projetada para produzir o efeito de controle e vigilância em um sistema penitenciário. A figura do romance do Tolkien não é muito diferente.
“Esse olho que tudo vê e vigia tem a ver com a sociedade panóptica, que Foucault traz em Vigiar e Punir. É o controle de tudo, o olho vigilante”, aponta.
Nicaelle também conta que essa vigilância está na própria disposição de cena e na fala dos personagens. “Eles se vigiam mutuamente. Os membros da Sociedade do Anel estão em vigilância constante uns com os outros. Se trouxermos para a nossa realidade isso acontece muito. Há câmeras em todos os lugares, tem sempre alguém olhando seu trabalho. Tudo tem essa interligação”.
As Duas Torres
A professora Marília Emília continua trabalhando com a cinematografia da obra de Tolkien. O trabalho com o primeiro filme, A Sociedade do Anel, sob essa perspectiva já está finalizado, mas a pesquisa continua com o segundo filme da trilogia: As Duas Torres.
Agora ela trabalha com a aluna Ionária Santos da Silva, estudante de Letras, e segue a mesma abordagem iniciada nas pesquisas do primeiro longa-metragem.
Ronaldo Gomes (bolsista)
Marcilio Costa
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