Ter, 31 de outubro de 2017, 19:00

Pesquisa analisa aspectos cômicos nas crônicas de Machado de Assis
Trabalho de iniciação científica identifica como a comicidade aparece na obra machadiana

Transitando por praticamente todos os gêneros literários como crônicas, poemas, romances, contos, folhetins, peças teatrais e críticas literárias, Machado de Assis se destacou por obras como Dom Casmurro; Memórias Póstumas de Brás Cubas; Quincas Borba; entre outras. O autor ainda é considerado por muitos críticos como um dos maiores nomes - senão o maior – da literatura brasileira.

Jacqueline Ramos, professora do Departamento de Letras da UFS de Itabaiana, coordena uma pesquisa que analisa os aspectos cômicos nas crônicas machadianas. A pesquisa, realizada junto com a estudante do 9° período do curso de Letras – Português, Iasmim Santos Ferreira, chegou ser premiada no 26º Encontro de Iniciação Científica, na categoria de Apresentação em comunicação oral, como melhor trabalho da área de Linguística, Letras e Artes.

A professora conta que o interesse pelo tema surgiu quando pesquisava, no mestrado e doutorado, a obra de Guimarães Rosa. Jacqueline Ramos explica que analisou um livro seu intitulado Tutameia. A publicação chamou sua atenção por ter sido prefaciada quatro vezes pelo autor, o qual, segundo ela, “nunca prefaciou nenhuma obra e era avesso a entrevistas”.

O mais interessante para a pesquisadora é que o primeiro desses prefácios é inteiramente dedicado ao cômico. Foi aí, então, que resolveu investigar porque o autor dedicou tanto espaço e demonstrou tanto interesse pelo humor, se ele sequer é reconhecido como um autor de comédias.


Jacqueline Ramos: "o maior valor do Machado está na interpretação que ele fornece sobre nossa cultura" (Foto: Adilson Andrade - Ascom/UFS)
Jacqueline Ramos: "o maior valor do Machado está na interpretação que ele fornece sobre nossa cultura" (Foto: Adilson Andrade - Ascom/UFS)

A partir do cômico, Jacqueline Ramos decidiu aprofundar ainda mais seus estudos sobre o gênero, que durante anos foi desvalorizado e discriminado. Machado surge como personagem principal dessa história, quando a professora optou por realizar um mapeamento das produções do século XIX. A primeira coisa que notou foi que três tradições cômicas se destacavam. A primeira seria o trato de costumes, um cômico mais repressor que ridicularizava comportamentos considerados desvios sociais para a época, ou seja, um tipo de comicidade mais conservadora. A segunda forma de manifestação seria a picaresca, ou romance malandro presente em Memórias de um sargento de milícias. Já a terceira, na qual Machado se encaixaria, seria a sátira de menipeia.

A sátira de menipeia se caracteriza por se permitir a mistura de situações e personagens fantasiosos, fictícios, com a realidade para criticar determinadas atitudes, ao invés de necessariamente indivíduos específicos. Jacqueline cita como exemplo a obra Memórias Póstumas de Brás Cubas, um marco do realismo brasileiro em que Machado de Assis cria um defunto-autor, ou seja, um morto que decide escrever suas memórias. A professora diz que Machado se utiliza desse aspecto cômico para criticar a objetividade pregada pela literatura realista.

“Ou seja, como é que eu posso falar da realidade, se eu participo dela? A gente sabe que nesse caso nossa visão sempre será parcial. Para eu conseguir uma visão total, a visão da impassibilidade que prega o realista, só se eu morrer primeiro. Ele cria um narrador inverossímil, ele afronta a lógica e o realismo pra dizer que o realismo pregado só é possível partindo do inverossímil. Ele mistura um jogo de linguagem e a construção de uma perspectiva para discutir a própria estética realista”, explica.

Mas o principal alvo das críticas machadianas, segundo a professora, é o que ela denomina como modos de raciocínios viciados, que o autor ataca utilizando-se tanto da ironia quanto da paródia. Um claro exemplo disso está no texto O sermão do diabo.

Jacqueline diz que Machado realiza em O sermão do diabo uma inversão cômica, ou seja, ele rebaixa um texto elevado, e disso resulta a paródia. “Quando você analisa a contraposição, o sermão da montanha - um discurso elevado que prega uma ética – versus esse discurso da igreja do diabo que está vinculado à ideologia capitalista, menos do que pregar uma igreja do diabo, ele está dizendo como se dar bem no mundo capitalista, ou seja, fazendo o oposto do que prega a ética”.

Assim como o cômico, a crônica também foi durante muitos anos alvo de discriminação. “Quando falamos em jornal, falamos de um produto que no dia seguinte vai para o lixo ou embrulhar peixe. É como se não houvesse uma sobrevivência da crônica sendo publicada em jornais, mas isso a gente já percebe que não é verdade porque elas são recolhidas, são publicadas”. A professora ainda revela que alguns estudiosos enxergam as crônicas de Machado como uma espécie de laboratório de estilo do escritor, onde já se é possível atentar-se para a questão do cômico, como quando Machado analisa o comportamento das pessoas nos bondes, lembrando daqueles que falam alto ou não cedem lugar aos idosos. Assuntos ainda atuais, apesar de serem de textos datados.


Iasmim Santos Ferreira: "em relação à crônica, o principal aspecto cômico se dá pela paródia" (Foto: Adilson Andrade - Ascom/UFS)
Iasmim Santos Ferreira: "em relação à crônica, o principal aspecto cômico se dá pela paródia" (Foto: Adilson Andrade - Ascom/UFS)

“Acho que o maior valor do Machado está na interpretação que ele fornece sobre nossa cultura, por isso ele continua tão atual. Ele está sempre mostrando essa contradição das classes, de uma elite que advoga a República, o capitalismo, os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade e que, no entanto, tem escravos”, aponta.

A crônica machadiana

Iasmim, que já trabalha na pesquisa há dois anos, conta que optou pela crônica pelo fato desta ser vista por muitos estudiosos - principalmente da área da literatura - como um gênero inferior, por ter surgido no jornal e, portanto, ser mais associada ao jornalismo do que à própria literatura.

A estudante conta que ao analisar as crônicas de Machado, notou que esse foi o tipo de texto mais produzido pelo autor ao longo de sua vida, e que poucos pesquisadores se debruçaram sobre o estudo dessa obra. “Os aspectos cômicos que a gente percebeu são muitos dos quais já podíamos notar desde o romance como o cinismo, o olhar afastado de Machado, o ceticismo; mas, em relação à própria crônica, o que a gente analisou é que o principal aspecto cômico se dá pela paródia”.

Iasmin conta que até iniciar a pesquisa, sua familiaridade com a obra de Machado restringia-se aos romances. Para ela, a principal diferença entre as crônicas e romances do autor, reside na maior liberdade que demonstrava ao escrever para os jornais, além da leveza com que costumava introduzir suas temáticas.

“Machado tem um olhar muito sublime para coisas que a gente nem se preocupa. Ele pega coisas corriqueiras como um tropeço na rua e faz daquilo uma crônica com muita peculiaridade. Machado é apaixonante por isso: ele pega fatos banais e transforma em coisas importantes”.

A estudante explica que com o texto O sermão do diabo, Machado não queria satirizar a fé, a religião ou a bíblia, mas mostrar as relações sociais no Brasil. Iasmin cita Sonia Brayner - uma das maiores estudiosa de suas crônicas no país - que as enxergava como a “solda” com que Machado entrelaçava toda a sua produção de mais de quatro décadas.


Machado usa recurso cômico que mistura situações e personagens fantasiosos com a realidade para criticar determinadas atitudes (Caricatura: Paulo Cavalcante [cavalcante-arte.blogspot.com.br])
Machado usa recurso cômico que mistura situações e personagens fantasiosos com a realidade para criticar determinadas atitudes (Caricatura: Paulo Cavalcante [cavalcante-arte.blogspot.com.br])

“Brayner vai dizer que Machado se debruça sobre a sociedade do Rio de Janeiro. Então ele está olhando e denunciando aspectos dessa sociedade. Machado está olhando para a sociedade e dizendo: ‘a saída para essa sociedade é ser malandra’. Não é ser justo, porque quem é justo não vai ter espaço. A desigualdade social é muito grande, então a saída é a malandragem. Pra mim sua brincadeira é muito mais de cunho social do que satírica”.

Iasmim afirma que Machado de Assis recebeu muitas críticas em relação à paródia, pois diziam que ele estava reproduzindo estrangeirismos. Ela explica que Silvio Romero foi um dos que mais criticaram a obra de Machado, “só que o que Machado vai além do que os estrangeiros fizeram. Ele bebe da fonte estrangeira e transforma aquilo com muita brasilidade, com muito nacionalismo”.

“Se formos pensar pela perspectiva política, os textos de Machado são muito atuais. Em relação ao aspecto literários e todas as características de construção literária que ele utilizou é o nosso grande escritor brasileiro, que tem sido estudado lá fora, que tem levado nosso nome lá fora, mesmo já sendo um defunto autor como ele brinca em Memórias Póstumas, mas Machado é realmente algo muito brasileiro que precisa ser lido e analisado pra que a gente acorde enquanto povo brasileiro”, finaliza.

Guilherme Almeida (bolsista)
Marcilio Costa

comunica@ufs.br


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