Em 2014 foram encontrados e libertados 44 trabalhadores em situação de trabalho escravo na fazenda Taquari, na cidade de Capela, Sergipe. A ação foi promovida pelo Ministério Público do Trabalho (MPT), com apoio da Polícia Rodoviária Federal e da Polícia Federal. Dois anos após, a fazenda foi condenada pela justiça do trabalho, sendo o único reconhecimento judicial até hoje para a prática no estado.
No Brasil, quase 50 mil trabalhadores em condições de escravidão foram resgatados entre os anos de 1995 e 2015, segundo levantamento da organização Repórter Brasil, a partir de dados do Ministério do Trabalho. No entanto, não há, nos dados do MT, nenhuma informação sobre a existência de trabalho escravo em Sergipe - mesmo após a libertação dos trabalhadores da fazenda Taquari.
A inconsistência nos dados chamou a atenção da pesquisadora Shirley Silveira Andrade, professora do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe. Recém chegada à UFS, em 2015 - veio transferida da Universidade Federal do Tocantins -, ela criou o Grupo de Estudos sobre Trabalho Escravo Contemporâneo (Getec).
A primeira tarefa do grupo foi identificar a incompatibilidade entre as informações divulgadas e a realidade sobre o crime em Sergipe. Para isso, a professora envolveu estudantes do curso de Direito da UFS, distribuídos em três subprojetos de pesquisa, cada um responsável por analisar cada instituição responsável pela fiscalização para o combate ao trabalho escravo: o Ministério do Trabalho, o Ministério Público do Trabalho (MPT) e, no caso do meio rural, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Participaram dessa etapa os discentes Kethlly Santana de Brito Silva, José Carlos da Silva Júnior, Victória Cruz Moitinho e Isadora Maria Santos da Silva.
O caso da fazenda Taquari foi o ponto de partida para a investigação. “Estudamos tudo sobre o processo da Taquari, analisamos o processo, fomos às audiências”, relata Shirley. Esse tipo de atuação é chamado na pesquisa de observação participante. A técnica foi associada a outras metodologias: entrevistas, análise documental - onde entra, por exemplo, a análise dos autos do processo - e revisão bibliográfica, que são as leituras sobre o tema.
Dos órgãos selecionados para a pesquisa, apenas o MPT esteve envolvido no caso Taquari - nessa parte do projeto, a aluna de Direito Kethlly Santana de Brito Silva foi a titular do trabalho. Os resultados do estudo renderam à equipe o prêmio Destaque na Iniciação Científica em 2016, na área de Ciências Sociais Aplicadas, condecoração dada pela UFS aos melhores trabalhos de IC da instituição.
Shirley e seus alunos identificaram, então, que havia outras denúncias no MPT sobre trabalho escravo, inclusive anteriores ao caso Taquari. “O que ocorre”, explica a professora, “é que existem outros instrumentos que podem ser utilizados, como o Termo de Ajuste de Conduta”. O TAC é um acordo, através do qual a parte autuada se compromete junto ao MPT a cessar determinada irregularidade, enquanto o órgão se abstém de denunciá-la à justiça, mas, ao mesmo tempo, fiscaliza o cumprimento do Termo. “No caso da Taquari, houve um TAC anteriormente, que foi descumprido pelos proprietários”, ressalta. A desobediência fez o caso chegar à justiça e à consequente condenação.
Divergências de dados
A investigação do grupo de pesquisa liderado por Shirley concluiu, então, que uma situação isolada levou o caso Taquari a dar visibilidade à existência de trabalho escravo em Sergipe. “O processo se deu a partir de uma investigação do MPT, o que me causou grande estranheza, já que no resto do Brasil o órgão atuante na fiscalização é o Ministério do Trabalho”, observa Shirley Andrade.
A professora constata, a partir das pesquisas desenvolvidas, que o Ministério do Trabalho em Sergipe não tem uma pauta interna de combate ao trabalho escravo, como ocorre em outros estados. Essa situação gera a divergência nos dados sobre o crime: o MPT fiscaliza e promove termos de ajustamento de conduta, dados que não chegam ao MT; este, por sua vez, não tem uma política adequada de fiscalização, o que leva a não constarem informações sobre trabalho escravo nos levantamentos nacionais do órgão. “O que nos intriga é que já houve pronunciamento de ex-superintendente do MT em Sergipe, inclusive à imprensa, em que ela dizia não haver a prática no estado”, expõe Shirley.
Outro obstáculo para a organização das informações é o entendimento sobre trabalho escravo entre os integrantes dos órgãos de combate (veja as diferentes interpretações no próximo tópico). “Tem órgão com uma visão mais ampla sobre o trabalho escravo, enquanto outro vê o termo de uma forma mais fechada”, alerta a estudante Kethlly. “No MPT, por exemplo, os profissionais têm mais contato com os trabalhadores, então têm uma vivência maior e entendimento mais amplo sobre o termo”, completa a discente.
A professora Shirley atesta a interpretação da aluna. “Mesmo magistrados têm essa visão muito forte [do trabalho escravo apenas na condição de prisão]”, pontua a docente. “Essa é uma das causas da invisibilidade do problema, o que leva, inclusive, a muitos trabalhadores sequer reconhecerem sua condição [de escravidão]”, conclui.
Ela ressalta ainda que, para o encorajamento dos trabalhadores em denunciar a utilização de mão-de-obra escravizada, é preciso que a articulação entre os órgãos crie condições que deem segurança aos operários. “O caso Taquari foi descoberto porque, em uma inspeção do MPT, um sindicato de Sergipe, que havia sido procurado por outro sindicato de Alagoas - estado de origem dos trabalhadores explorados - denunciou aos procuradores do órgão”, argumenta Shirley, “então essa aproximação foi fundamental”.
Trabalho Escravo Contemporâneo?
Apesar de o Brasil ter reconhecido oficialmente, diante da Organização Nações Unidas, a existência do crime em sua forma contemporânea e a necessidade de combatê-lo, o conceito de trabalho escravo no Brasil, até 2003, era muito aberto. Nesse ano, o código penal brasileiro foi alterado e instituiu quatro formas principais para caracterizar o trabalho escravo. Além das formas que remetem à chamada escravidão moderna - que inclui o trabalho forçado e quando o trabalhador é impedido de ir embora por conta de dívidas impostas pelo patrão por sua estadia - foram acrescentadas mais duas modalidades: a jornada exaustiva e o trabalho degradante. Essas duas modalidades ajudam a integrar o termo Trabalho Escravo Contemporâneo (TEC).
No meio jurídico, elas acabaram sendo chamadas de condições análogas à escravidão. “Eu não concordo com essa visão”, alerta a professora Shirley. “Na verdade, o instituto muda historicamente - devemos lembrar, por exemplo, que o termo democracia mudou muito desde sua criação na Grécia -, além disso, a Constituição brasileira usa o termo trabalho escravo; então, não acho que seja uma condição análoga, mas uma nova forma de escravizar”, enfatiza a pesquisadora.
A docente explica que um exemplo de jornada exaustiva são as chamadas “empreitadas”, nas quais o trabalhador não tem carga-horária definida, mas assume a obrigação de cumprir metas que exigem jornadas desumanas. Já o trabalho degradante tem a ver com o ambiente laboral. “É o menos aceito como trabalho escravo, mas é justamente o mais utilizado”, disserta Shirley. “Na região norte [onde a professora atuou], já encontramos trabalhadores morando no mesmo lugar que as vacas, comendo comida podre, bebendo água podre”, denuncia. É importante destacar, entretanto, que desrespeito trabalhista não é trabalho escravo. Este acontece “quando o desrespeito é tamanho, que o trabalhador é tratado como animal”, pontua.
Grupo de pesquisa
Os estudos sobre trabalho escravo em Sergipe ainda são tímidos, segundo Shirley Andrade. “Quando cheguei à UFS, só havia uma professora na instituição, do Departamento de Geografia, pesquisando o tema”, conta, “então nos unimos e hoje ela colabora conosco no mapeamento da cultura da cana-de-açúcar em Sergipe”.
A primeira etapa dos trabalhos do Grupo esteve voltada para o funcionamento dos órgãos de combate ao trabalho escravo. “Agora estamos mapeando o trabalho rural no estado e vamos estudar diretamente os trabalhadores, verificar onde é a maior incidência de trabalho escravo [em qual tipo de cultura]”, indica Shirley.
Os estudantes que vinham atuando continuam integrando o Grupo de Pesquisa, que recebeu novos alunos este ano. No caso de Kethlly Santana, além da colaboração à equipe, a discente desenvolve seu trabalho de conclusão de curso em sintonia com o tema, pesquisando o TACs promovidos pelo MPT - órgão em que ela vem atuando como estagiária, após aprovação em seleção do órgão.
Para saber mais
Shirley Andrade publica ocasionamelmente artigos na seção Nossos Direitos, do portal Expressão Sergipana, onde, inclusive, estreará em breve uma coluna chamada Trabajo. A pesquisa de Iniciação Científica fonte desta reportagem será publicada em livro, em formato de artigo - a coluna editada pela docente informará como adquirir a obra.
Marcilio Costa
comunica@ufs.br