A anemia falciforme é a hemoglobinopatia (doença sanguínea genética) mais comum na espécie humana, sendo reconhecida pela Organização das Nações Unidas (ONU) como um problema de saúde pública atingindo, segundo informações do Ministério da Saúde, cerca de 5% da população brasileira.
Em Sergipe, dados do Programa Nacional de Triagem Neonatal (PNTN) – mais conhecido como “teste do pezinho” -, apontam que cerca de 1,3% da população possui a enfermidade, que, ao contrário do que muitos possam imaginar, nada tem a ver com a falta de ferro no sangue.
De acordo com a onco-hematologista e professora de medicina da Universidade Federal de Sergipe Rosana Cipolotti, a doença se justifica por uma troca – ainda na formação fetal - de um aminoácido glutâmico (localizado na sexta posição da cadeia ß da hemoglobina) por uma valina, resultando na defeituosa hemoglobina S (HbS), que altera o aspecto redondo característico das hemácias para um pontiagudo, similar ao de uma foice. Daí o nome “falciforme”.
Ela explica ainda que, por se tratar de uma doença genética e hereditária, a condição de um indivíduo com anemia falciforme ocorre pela combinação de duas hemoglobinas alteradas (HbS), cada uma herdada por um genitor. Assim, embora esses genitores não sejam afetados pela doença, são eles que possuem o traço falciforme, podendo transmiti-lo aos seus descendentes, configurando um alto risco reprodutivo no que se refere a essa hemoglobinopatia.
“Enquanto a doença falciforme é precocemente diagnosticada através do teste do pezinho, existem no Brasil mais de 20 mil pessoas com o traço falciforme, que é a combinação genética de uma hemoglobina normal a uma alterada. Por se tratar de uma condição assintomática, muitas dessas pessoas desconhecem possuir a alteração na hemoglobina, podendo transmiti-la aos seus filhos, gerando descendentes com a doença, a qual, infelizmente, ainda se trata de uma enfermidade incurável”, diz a professora.
Foi justamente esse cenário da falta de conhecimento populacional sobre o traço falciforme que levou a pediatra Débora Cristina Fontes Leite a desenvolver seus estudos de doutorado no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde da UFS.
Sob a orientação da professora Rosana Cipolotti e objetivando proporcionar um aconselhamento genético adequado às famílias dos pacientes com traço falciforme, a pesquisa de Débora verificou o comportamento espacial dos indivíduos heterozigotos nascidos entre outubro de 2011 e outubro de 2012 na rede pública de saúde hospitalar do estado de Sergipe e identificou três áreas de alta freqüência da hemoglobina S (HbS) no estado.
“A intenção era entender a freqüência do traço falciforme nas regiões do estado através da triagem neonatal e, posteriormente, conversar com essas famílias, a fim de que pudessem ter conhecimento sobre a doença falciforme e compreender a condição genética do traço da doença apresentado pelos seus descendentes, permitindo-lhes uma condição reprodutiva futura mais consciente”, explica Débora.
Dados do traço falciforme em Sergipe
Durante o período de levantamento da pesquisa, tendo como base os testes realizados pelo PNTN, foram notificados 34.108 nascimentos no estado, sendo realizados 32.906 exames para a hemoglobinopatia, o que resultou numa cobertura de 96,4% dos nascidos vivos. Destes, 1.142 (3,4%) foram identificados como portadores de traço falciforme.
Essa abordagem permitiu a identificação de algumas áreas de alta frequência – circundadas por áreas de baixa frequência - para a hemoglobina S em Sergipe. Em dados relativos, podem ser citadas a região metropolitana de Aracaju, a região do Vale do Cotinguiba e a do Baixo São Francisco. Já em dados absolutos, a maior frequência da hemoglobina S (HbS) ocorre nos municípios de Aracaju (273/22,7%), Nossa Senhora do Socorro (102/8,4%), Estância (64/5,1%) e São Cristóvão (58/4,8%). Em contrapartida, dois municípios não apresentaram qualquer resultado para o traço falciforme: Malhada dos Bois e São Miguel do Aleixo.
Esses índices, segundo a pesquisadora, refletem a própria formação sócio-histórica de Sergipe, uma vez que a doença falciforme teve sua origem na África e foi difundida através do tráfico negreiro e da formação de comunidades quilombolas nos municípios de todo o país. Entretanto, ela frisa que a doença e o traço falciformes não atingem apenas os afrodescendentes.
“A doença teve origem na África, mas a miscigenação racial difundiu a hemoglobina S (HbS) para todo o mundo, sendo perfeitamente notificados na literatura acadêmica casos da doença e do traço falciformes na América do Norte e na Europa. Assim, qualquer pessoa pode ter a hemoglobina alterada. Inclusive, aqui no estado, durante o período de realização da pesquisa, percebeu-se a correlação positiva existente entre a miscigenação (através da denominação étnica dos familiares dos pacientes) e a presença da hemoglobina S nos pacientes”, diz Débora.
Aconselhamento genético
Tendo em mãos os dados coletados através do PNTN em Sergipe no período de outubro de 2011 a outubro de 2012, o próximo passo da pesquisa foi reunir os familiares dos pacientes nascidos com o traço falciforme e lhes proporcionar um aconselhamento genético adequado para a compreensão das probabilidades genéticas futuras, uma vez que os indivíduos diagnosticados são assintomáticos para a doença falciforme.
Dessa forma, entre fevereiro de 2013 e março de 2014, foram atendidos no Hospital Universitário 290 familiares de lactantes heterozigotos já identificados para a doença falciforme no início da pesquisa.
“Assim que chegavam ao HU, os familiares recebiam o resultado do exame por um membro da equipe do Serviço Social e, posteriormente, eram conduzidos ao auditório para serem orientados sobre o diagnóstico. Antes das orientações, os familiares que aceitassem participar da pesquisa eram convidados a responder um questionário estruturado sobre doença falciforme e traço falciforme, bem como informar dados demográficos e socioeconômicos da família”, explica Débora.
Segundo a professora Rosana Cipolotti, em nenhum momento, o aconselhamento genético tem por objetivo proibir a futura reprodução entre pacientes com traços falciformes. “A finalidade é levar a informação e a conscientização do alto risco reprodutivo, pois ainda que tenhamos casais heterozigotos [com traços] para a anemia falciforme, existem métodos que viabilizam a reprodução saudável entre esses indivíduos, a exemplo da inseminação artificial”, diz.
Dos 290 familiares entrevistados para a pesquisa, 243 (83,54%) disseram nunca ter ouvido falar sobre a doença ou o traço falciformes, o que, segundo Débora, é um dado muito preocupante, reforçando a significativa necessidade do aconselhamento genético e, consequentemente, da ampla conscientização sobre a probabilidade de, futuramente, essas crianças gerarem indivíduos com a doença.
“Durante o aconselhamento genético, salientamos que não existe um culpado para a condição do traço falciforme. Nosso objetivo foi informar aos familiares a condição dos lactantes diante da alteração na hemoglobina e, sobretudo, fazê-los entender que, apesar da condição genética, esses indivíduos não estão doentes e não terão quaisquer sintomas durante a vida. Essa compreensão faz toda diferença, uma vez que, a princípio, muitos desses familiares ficam assustados, imaginando estar diante de crianças com condições de saúde limitadas, o que não é verdade. Em se tratando do traço falciforme, a observação é na condição reprodutiva”, ressalta ela.
Diagnóstico do Traço Falciforme em Sergipe
O diagnóstico do traço falciforme e da doença falciforme é realizado na rede pública de saúde através do Programa Nacional de Triagem Neonatal (PNTN) – teste do pezinho -, criado pelo Ministério da Saúde em 2001 e planejado para ser implantado em três fases, de acordo com a estrutura de laboratórios e de corpo clínico de cada estado.
Na primeira fase, o diagnóstico foi para a fenilcetonúria e o hipoterioidismo; na segunda, foram acrescentadas as hemoglobinopatias e, na terceira, a fibrose cística. Em Sergipe, a segunda e a terceira fases tiveram início em outubro de 2011, sendo realizadas por uma equipe multidisciplinar do Hospital Universitário (HU).
Segundo Rosana, que integra a coordenação da hematologia pediátrica do HU, o acompanhamento dos pacientes com anemia falciforme já era feito no hospital antes mesmo da criação do PNTN, contribuindo assim para a redução da mortalidade precoce dos mesmos. No entanto, a introdução da logística adotada pelo MS deixou a dinâmica muito mais prática.
“Com o teste do pezinho sendo ofertado em quase toda a rede pública do estado, hoje, conseguimos ter um maior controle dos pacientes diagnosticados com a doença falciforme, o que é um avanço importante no que se refere à profilaxia. Além disso, os estudos e resultados apontados na pesquisa de Débora contribuem de forma significativa para uma análise espacial da hemoglobina afetada nos pacientes do estado”, afirma a orientadora da pesquisa.
Atendimento a pacientes com doença e traço falciformes no HU
Em Sergipe, o teste do pezinho pode ser realizado nas mais diversas Unidades Básicas de Saúde (UBS), tendo seus resultados posteriormente encaminhados à equipe multidisciplinar de triagem neonatal do Hospital Universitário (HU).
Em caso de diagnóstico positivo para o traço ou a doença falciforme, o Serviço Social do hospital entra em contato com a família do paciente, convocando-a para o esclarecimento e a orientação da condição genética.
Esse atendimento é feito todas as quartas-feiras pela manhã e a marcação é feita diretamente no balcão do laboratório, não sendo necessária espera.
Como saber se você tem o traço falciforme?
O diagnóstico da anemia falciforme ou do traço falciforme pode ser obtido através de um hemograma (exame de sangue) simples, realizado pelo método de eletroforese de hemoglobina.
De acordo com Rosana Cipolotti, esse exame pode ser solicitado por qualquer especialista da área médica e, em caso positivo para a doença ou o traço, deve-se consultar imediatamente um hematologista.
“Normalmente, pacientes adultos que possuem a anemia falciforme já conhecem o seu diagnóstico devido aos sintomas da doença, que costumam aparecer desde os primeiros anos de vida. Já os indivíduos com traço falciforme, por serem assintomáticos, raramente sabem da sua condição genética e, através do exame, passa a conhecê-la. Em todos os casos, é necessário ter uma orientação de um especialista da área de hematologia para sanar quaisquer dúvidas”, explica.
Para saber mais
A tese está disponível, na íntegra, no Banco Digital de Teses e Dissertações (BDTD). Clique aqui para acessar.
Por Jéssica Vieira
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