Desde os primeiros meses de vida, quando são inseridas no processo de constituição familiar, as crianças observam, incorporam e reproduzem comportamentos já estabelecidos por sua rede social primária antes mesmo do seu nascimento. Assim, elas passam a ser moldadas às normas, leis e costumes de uma cultura pré-estabelecida sem, muitas vezes, terem participação ativa durante sua formação identitária.
Essas condutas familiares, associadas à consequente capacidade responsiva das crianças, são conhecidas como estilos de socialização parental e, segundo os estudos de mestrado em Psicologia Social da ex-estudante da UFS Nayara Chagas Carvalho, são fatores determinantes em diversas percepções infantis, especialmente no que diz respeito ao sexismo.
Isso porque, segundo Nayara, embora amplamente discutido no universo adulto, sobretudo no que diz respeito aos papéis de gênero, é no ambiente infantil que o sexismo encontra terreno fértil para as suas primeiras e mais profundas raízes.
“O sexismo é uma atitude de discriminação frente a indivíduos de outro gênero que pode ser manifestada de forma sutil ou hostil. Quando perguntamos a uma mulher grávida se ela espera um menino ou uma menina, reproduzimos uma expectativa social do comportamento daquele bebê em relação ao mundo, ao mesmo instante em que os próprios pais o estão direcionando às suas expectativas. Quando se espera um menino, por exemplo, todo o discurso é baseado em competição e dominância. Já quando se espera uma menina, isso se transforma em cooperação e não agressividade”, explica Nayara.
Sendo assim, inserida nesse universo, a criança passa a categorizar comportamentos como sendo típicos de determinado gênero, incorporando a percepção dos pais acerca do que é feminino e/ou masculino, o que, segundo a pesquisadora, pode gerar dificuldades de socialização inclusive na vida adulta.
O que dizem as crianças
Objetivando analisar essas dificuldades e investigar a presença do sexismo na infância, correlacionando-o às condutas educacionais dos pais, os estudos de Nayara analisaram o comportamento de 30 (trinta) crianças, todas elas entre 6 e 7 anos, através de entrevistas presencias e questionários sobre estereotípicos positivos e negativos (legais, inteligentes, fortes, carinhosos, quietos, chatos, burros, fracos, agressivos e bagunceiros) a serem atribuídos ao sexo masculino ou feminino.
Os depoimentos foram incluídos na pesquisa sem identificação das crianças, por isso usamos nomes fictícios. Em uma das transcrições, Arthur, 7 anos, afirma que há diferenças entre o comportamento de meninos e meninas. “As meninas da minha escola são inteligentes e carinhosas, mas acho que os meninos são muito mais legais que as meninas. Nós temos brinquedos muito mais legais. Armas, foguetes, aviões, bola de gude e LEGO... Elas só brincam com aquelas bonecas e nem são tão fortes assim.”
Também associando o comportamento masculino às tarefas de maior competição e agressividade, Gustavo, 6 anos, relata que “Menino é forte e pode se defender. Quando cresce, vira o dono da casa e pode mandar em tudo, escolher o que quiser. As meninas não podem brincar de boneco. Elas pintam as unhas e ficam assim, reclamando o tempo todo...”
As meninas entrevistadas também demostraram marcas de estereótipos sexistas. Júlia, 6 anos, disse que “Meninas são cheirosas, andam arrumadas e não sujam as roupas da escola. Os meninos são diferentes. Vivem sujos, suados. Eu não queria ser homem”. Já Ana, 7 anos, explicou: “A gente se diverte sozinha , sem os meninos. Pega as bonecas, a Barbie, brinca de casinha e de chá de boneca sem os meninos”.
Nayara explica que esses discursos produzidos pelas crianças correspondem a um sexismo sutil, reproduzido através da imitação e da observação do comportamento advindo dos pais ou das pessoas presentes no convívio familiar (que nutrem expectativas em relação ao comportamento infantil desde antes do nascimento das crianças), sem permitir-lhes a capacidade de reflexão discursiva acerca do que está sendo dito ou feito. Situação bastante divergente do sexismo flagrante, comumente visualizado no universo adulto, no qual as pessoas têm total capacidade de reflexão e depreciam ou enaltecem atividades cotidianas, baseando-se nos estereótipos reproduzidos por uma sociedade patriarcal.
Os pais e a socialização
De acordo com Marcus Eugênio de Oliveira Lima, professor do Departamento de Psicologia da UFS e orientador da dissertação de Nayara, essas internalizações estão diretamente associadas aos estilos de socialização parental dominantes no processo educacional da criança. Ele explica que, na Psicologia, existem basicamente quatro estilos de socialização: o autoritário, através do qual as exigências dos pais são mais determinantes que sua capacidade responsiva; o democrático, em que pais expressam autoridade, mas permitem que os filhos manifestem suas opiniões; o permissivo, no qual os pais não conseguem estabelecer limites às crianças, perdendo completamente sua autoridade sobre elas; e o negligente, pelo qual os pais não são autoritários nem responsivos, mantendo, de forma geral, os filhos a certa distância de responsabilidade.
“Quanto mais inserida no estilo autoritário ou no negligente uma criança estiver, mais indícios de comportamento sexista ela vai adquirir, uma vez que, nas sociedades patriarcais, o autoritarismo e a negligência são fortemente associados à figura paterna. Ora é o pai quem manda, ora é o que abandona, o que faz com que as mães exerçam papéis de proteção, carinho, cuidados e gerenciamento do lar. De forma geral, essa é a visão da família sob o olhar da criança, sobretudo nos tipos de socialização autoritária e negligente. Obviamente, trata-se de um fator cultural, mas é uma associação que precisa ser levada em conta e discutida no aspecto global porque, hoje, sabemos que homens e mulheres podem desempenhar igualitariamente seus papéis na constituição social e isso precisa ser repassado às crianças ”, explica Marcus.
A figura paterna, inclusive, foi um desafio na pesquisa de Nayara. Ao iniciar as pesquisas com as 30 crianças e com seus respectivos responsáveis, muitos deles se recusaram a participar, repassando às mães o papel de responsáveis pela conduta educacional.
“Com a resistência dos pais, tivemos que analisar as características de sexismo presentes nas crianças e em suas respectivas mães. Ao fazer essa correlação em função do gênero, observamos uma significativa proporcionalidade entre a expressão de sexismo total da criança e o indicador de sexismo flagrante (mais assertivo) das mães, mostrando que estas tendem a reproduzir e repassar de forma consistente as práticas e crenças sexistas que já lhe foram internalizadas”, explica Nayara.
Das 30 crianças entrevistadas, 28 apontaram características de sexismo sutil e 2 delas características mais hostis. No entanto, relatadas de forma indireta, sem uma depreciação consciente e reflexiva. Nesse sentido, os estudos apontam que as mães reproduzem e alimentam crenças sexistas, muitas vezes de forma inconsciente, já que elas mesmas não se reconhecem enquanto vítimas da discriminação em contextos nos quais o sexismo benevolente é expresso. Por outro lado, a presença do sexismo hostil é compreensível dada a sociedade patriarcal na qual vivemos.
Assim, adotar estilos parentais autoritários e permissivos ajuda a legitimar práticas sociais e crenças naturalizantes acerca do gênero, limitando as experiências e o desenvolvimento das habilidades das crianças na medida em que são dados cuidados diferenciados, baseados em características físicas e biológicas, a meninos e meninas.
Segundo o professor Marcus Eugênio, desfazer esse panorama é possível a partir do momento em que os pais comecem a quebrar os seus próprios paradigmas acerca dos papeis de gênero que exercem na sociedade e, consequentemente, acerca do futuro e/ou vida dos filhos. “Não se pode esperar que um filho seja apaixonado por carros e uma filha ame cozinhar só porque esses papéis foram determinados a homens e mulheres há séculos. Os pais precisam entender que é possível exercer sua autoridade ainda que os filhos exerçam seu direito de questionar, de conhecer e de testar outras possibilidades fora do que se foi construído naquele ambiente. Quanto mais próximos à socialização parental democrática eles estiverem, menos sexistas e, consequentemente, menos discriminatórios eles serão. É preciso criar filhos para melhorar o mundo, não para reproduzir o que deu errado”, afirma Marcus.
Para saber mais
A dissertação está disponível, na íntegra, no Banco Digital de Teses e Dissertações (BDTD), clicando aqui.
Jéssica Vieira
comunica@ufs.br