Ódio, desprezo, sentimento de posse e ciúme são alguns dos elementos que desencadeiam o feminicídio, crime caracterizado pelo homicídio de mulheres, motivado pelas relações de gênero. De acordo com dados do Mapa da Violência, dos 4.762 homicídios de mulheres em 2013, 33,2% (1.583) foram praticados por parceiros íntimos (ver infográfico).
Um dos mecanismos para tentar conter esses números, foi a tipificação do feminicídio como crime hediondo pelo Código Penal Brasileiro, através da lei 13.104/2015. Em tese, essa lei se distancia da neutralidade penal de igualdade, que objetiva o tratamento uniforme para todos os cidadãos. Isso se dá, porém, para que se concretize a “igualdade substancial”, que leva em consideração a desigualdade nas relações sociais.
Com o objetivo de problematizar a violência de gênero nas relações íntimas domésticas, a professora Claudiene Santos e os alunos Wilton Almeida (UFS), Letícia Rocha (Unit) e Lucas Feitosa (UFS), Lynna Gabriella (UFS) desenvolveram um estudo de caso que analisa os depoimentos presentes em um processo judicial de um caso de feminicídio cometido pelo companheiro da vítima. Para os pesquisadores, esses depoimentos podem revelar as relações assimétricas de poder que motivam os crimes contra as mulheres.
O acesso aos processos se deu a partir do contato com o Ministério Público de Sergipe (MPSE), durante o processo de elaboração de um sistema de notificação dos casos de violência contra a mulher “Nós recebemos cinco casos, dos quais alguns estavam incompletos e esse foi o que nos chamou a atenção pelas marcas de machismo, da ideia de propriedade, do medo da traição, do ciúme que culminou na morte dessa mulher”, relata Claudiene, líder do Grupo de Pesquisa Gênero, Sexualidade e Estudos Culturais (Gesec).
O título do trabalho - “Eu não sou corno, eu não sou besta!”: estudo de caso de feminicídio em Sergipe - surgiu a partir do relato de um dos vizinhos da vítima. De acordo com o depoimento da testemunha, após as agressões que culminaram na morte da mulher, o agressor repetia: “Eu não sou corno, eu não sou besta!”. “Não tem nos depoimentos, de nenhuma das pessoas, indício de que ela pudesse ter feito isso [cometido traição], mas ainda que tenha tido um relacionamento extraconjugal isso não é justificativa para uma pessoa matar ou agredir a outra. As questões assimétricas que colocam o homem como dono dessa mulher é o que prevalece quando a gente olha para essas relações de violência”, reforça Claudiene.
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As relações assimétricas de poder, estudadas por Claudiene, são um conceito presente no trabalho do filósofo francês Michel Foucault. Para o teórico, as relações de poder permeiam toda a sociedade, nas diferentes formas de socialização. Dessa forma, as questões de gênero que permeiam as relações conjugais entre homens e mulheres caracterizam relações assimétricas de poder.
Claudiene e sua equipe buscaram, então, identificar nos depoimentos contidos no processo estudado, marcadores que revelem essas relações assimétricas de poder – ciúmes e sentimento de posse, por exemplo, são alguns deles.
De acordo com trechos do processo, um dos filhos acordou com as discussões e ouviu o pai afirmar que a mãe estaria lhe traindo. A criança, que presenciou agressões por pelo menos quatro vezes, foi pedir ajuda ao vizinho ao notar que sua mãe não respondia. Segundo as análises feitas pelo estudo de caso, o relato da criança evidencia as violências causadas ao presenciar as agressões e a morte de sua mãe.
Em seu depoimento, o agressor afirma que a esposa não o permitia olhar seu celular. Ele alega também que nunca houve brigas físicas, apenas xingamentos entre os dois. Os pesquisadores, em suas análises, apontam como marcadores dessa fala a necessidade de controle e a suspeita de traição, que se configuram como uma extensão dos domínios de posse, controle e ira.
Para Wilton Almeida, bolsista titular da pesquisa, o patriarcado, mecanismo social que beneficia o homem, sistematicamente, em detrimento da mulher, legitima esse tipo de violência e serve como arcabouço para que essas práticas aconteçam. “Esse discurso é reproduzido na sociedade como um acerto e por estar imerso na estrutura social, há uma legitimação. O patriarcado foi norteador para nossa análise de discurso e, então, percebemos os marcadores de gênero como o ciúme, a possessão, dominação masculina e as relações assimétricas de poder”, destaca o estudante.
Os resultados da pesquisa demonstram que no caso analisado, assim como em muitos outros relatados em outros trabalhos, o feminicídio é o ápice de uma sucessão de eventos de violência, evidenciando a perpetuação dos valores machistas e a negligência dos sujeitos e das instâncias sociais perante tais situações.
O cumprimento das medidas de proteção às vítimas de violência doméstica, o fortalecimento da rede social de apoio e a inclusão da perspectiva relacional de gênero, segundo conclui a pesquisa, se mostram como passos fundamentais para a ruptura dos processos de violência, que podem culminar no feminicídio.
Rede de ações
De acordo com Claudiene, há cerca de quatro anos o Gesec e outras instituições do estado vêm tecendo uma rede feminista e de intervenção. Dentre as ações desenvolvidas, vem acontecendo, em parceria com a Secretaria de Saúde, a capacitação e formação dos agentes comunitários de saúde para que eles possam ter um olhar mais sensibilizado para as questões de violência.
Além disso, o Conselho Municipal de Defesa dos Direitos da Mulher, através da fiscalização, tem realizado trabalhos para fortalecer essa articulação. “É uma rede diversificada para que a gente possa sensibilizar esses profissionais que estão na linha de ponta para que eles e elas possam intervir nessas relações. A gente precisa pensar como podemos melhorar a eficácia desses serviços, que são oferecidos nas diversas áreas com o fortalecimento dessa rede”, explica a pesquisadora.
Formada por instituições e grupos como o Departamento de Atendimento a Grupos Vulneráveis (DAGV), o Coletivo de Mulheres de Aracaju (CMA), o Conselho Municipal dos Direitos da Mulher (CMDM) e o Grupo de Pesquisa de Gênero, Sexualidade e Estudos Culturais (Gesec), a rede organizou em março deste ano o “Tecendo a rede: na atenção aos autores de violência de gênero”. O evento teve como objetivo sensibilizar e implantar uma política de atenção aos autores dessa violência. “Nós precisamos atender esse homem também, porque ele precisa entender que existem outras formas de resolver o conflito no relacionamento, que não pode ser através da violência, com silenciamento do outro. É preciso aprender o diálogo e outras formas de comunicação que não sejam violentas”, ressalta Claudiene.
Para a professora, os homens não sabem falar de si e isso é uma das consequências do patriarcado. “Nós precisamos questionar que homem é esse que nós estamos criando. Nós aprendemos que falar sobre o que sentimos é bom, enquanto eles aprendem que falar sobre o que sentem é fraqueza, ‘coisa de mulher’. Tudo que eles interpretem como uma aproximação do universo feminino é como se deixassem de ser homens o bastante”.
Lei do feminicídio
Em vigor desde 9 de março de 2015, a Lei nº 13.104 altera os artigos 121 do Decreto-Lei nº 2.848/1940 do Código Penal e 1º da Lei nº 8.072/1990 para que o feminicídio possa ser qualificado como crime de homicídio e incluído nos crimes hediondos.
O assassinato é considerado feminicídio quando praticado contra a mulher pela condição de ser mulher, seja pelo menosprezo e discriminação ao gênero ou pela violência doméstica e familiar.
A pena é aumentada de 1/3 até a metade quando o crime é praticado: durante a gestação ou nos três meses posteriores ao parto; contra uma menor de 14 anos, maior de 60 ou com deficiência; e na presença dos filhos ou da família.
Para saber mais
A pesquisa está disponível na página eletrônica da Editora Realize (a partir da página 1.748).
Dayanne Carvalho (bolsista)
Marcilio Costa
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