Muitos certamente não sabem, mas a palavra Sergipe, tal qual a conhecemos, já foi escrita de diferentes formas desde a colonização do território, na década de 1590. Ciriji, Sirigype, Serzipe e até mesmo Serygipe, as variações gráficas do termo refletem as múltiplas nomeações do nosso estado durante o período colonial. Mas o que esses nomes denominam, o que significam e onde foram originados?
Estas dúvidas serviram como ponto de partida para a elaboração do projeto de dissertação de mestrado de Cezar Alexandre Neri Santos, do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Sergipe (UFS).
Sua pesquisa traz como base os estudos toponímicos, um modo de pesquisa que busca entender a origem da nomeação de espaços geográficos e suas respectivas motivações. Assim, seu objeto de análise são os topônimos, isto é, os nomes próprios de lugares. Essa análise também é considerada uma parte da linguística ligada à história, à geografia e à antropologia.
Seus estudos foram desenvolvidos sob a orientação da professora Lêda Pires Corrêa. Para ela, a pesquisa permitiu não apenas um aprofundamento teórico-metodológico da toponímia, como também uma melhor análise que revele à sociedade, especialmente aos sergipanos, os aspectos culturais conservados desde o período histórico colonial brasileiro.
Os documentos
O trabalho parte da ideia que toda nominata coletada permite recuperar elementos línguo-culturais de Sergipe colonial, que durante a época investigada (de 1594 a 1623) teve suas terras exploradas por parte da Coroa Portuguesa. É aí que surgem as cartas de sesmarias, cuja função era registrar todas as atividades em relação ao cultivo nos lotes menores de terra doadas aos colonos. O intuito era monitorar e tornar a terra mais produtiva. Assim, essas certidões foram validadas em registros públicos e efetivadas junto ao Estado em caráter oficial.
Para a análise dos topônimos registrados nessa época, Cezar teve acesso às 218 cartas sesmariais (de sesmarias) disponíveis no Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe (IHGSE) Este acervo é considerado um mais antigos em língua portuguesa sobre Sergipe. Além disso, o pesquisador contou também com dados da Secretaria Estadual da Agricultura, que contribuiu com informações sobre os acidentes geográficos do estado, e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE).
Decifração
A reunião de documentos e informações necessárias rendeu alguns problemas nesse meio percurso. “Minha primeira dificuldade foi entender o que ali estava escrito, porque mesmo estando em português, estamos tratando de uma língua do século XVI e XVII, o que pra um leitor do século XXI não é nada fácil”, explica. Outro fator que dificultou sua pesquisa foi a falta de dados no IBGE que pudessem responder sobre a toponímia sergipana. “Infelizmente alguns documentos não apresentam referência às fontes para a validação da informação, estando facilmente a mercê de contestações”, pontua.
Após a análise dos dados, foram encontrados 73 topônimos diferentes, sendo 58 de procedência indígena, 18 portuguesa, 1 espanhola e 1 de ascendência híbrida, junção entre o português e o indígena. Na dissertação, todos se encontram catalogados, interpretados e classificados. “Esse registro catalográfico documenta a ocorrência de tupinismos e lusitanismos que fornecem subsídios linguísticos para a análise sócio-histórica do período colonial em Sergipe”, explica Lêda.
Nesse levantamento, foram identificados topônimos de motivação religiosa, de natureza física, de origem antropocultural, relativos a elementos naturais, como a fauna e a flora, e que indicam os valores externos de um povo. Mas também se encontram nomeações dadas em referência aos animais, aos fenômenos atmosféricos, aos minerais ou ainda como uma forma de homenagear autoridade ou falecidos ilustres. São possibilidades infinitas que surgem a partir de diversas variáveis.
Um grande modelo toponímico encontrado nessas certidões é de motivação geográfica – em referência aos aspectos físicos do lugar – como o município de Itabaiana, que indica na língua tupi baiana de pedra. Nessa categoria é possível enquadrar ainda as cidades Porto da Folha, Malhada dos Bois, Laranjeiras, São Cristóvão, dentre outros.
Os grandes rios também se sobressaem na toponímia sergipana. Opara, por exemplo, é um nome indígena que designava o que hoje chamamos de Rio São Francisco. Já o Ypochi foi posteriormente alcunhado de Poxim, que se trata de um grande rio. Além deles, o Rio Vaza Barris também havia ganhado na época uma nomeação tupi, no qual os índios chamavam de Irapirang.
Mas quem representa a maioria são os topônimos de natureza religiosa. Segundo Cezar, a igreja católica teve um peso muito grande na formação da sociedade sergipana “Não somente enquanto instituição, mas como fervor dos seus adeptos, que resultam em uma projeção dos nomes de certos lugares”, aponta. Essa realidade é percebida nos atuais municípios de Nossa Senha da Glória, Nossa Senhora das Dores, Rosário do Catete, Cedro de São João, Itaporanga D’Ajuda, São Miguel do Aleixo, entre outros.
Quanto à análise do fenômeno gráfico-fonético, o estudo apontou que parte das transformações internas à estrutura se deu, principalmente, porque é grande a quantidade de topônimos de ascendência indígena. Logo, atesta-se o fato de que são os europeus os principais responsáveis pela toponímica que se estabeleceu em Sergipe, uma vez que muitos dos nomes de origem tupi foram substituídos por denominações de ordem portuguesa, permanecendo em nossos mapas contemporâneos.
Todavia, Cezar ressalva que europeus e índios se dispuseram a uma troca línguo-cultural a partir do momento em que os colonos se apropriaram do tupi para catequizarem os índios por volta de 1549. A professora Lêda demarca também que essa é uma constituição de identidade própria, que bem caracteriza o processo histórico do estado de Sergipe, graças aos vários topônimos exclusivos do local. “Embora o contato entre brancos e índios tenha se pautado por relações de dominação do colonizador português, pode-se observar a preservação do modus vivendi do povo nativo”, pontua a orientadora.
Cezar ratifica ainda a importância dos índios na formação da identidade do nosso estado. “Temos uma grande presença indígena em nossa história, refletida na origem dos topônimos sergipanos, então a constituição dessa sociedade deve muito a esses povos”, conclui.
Do curioso ao científico
Além de atiçar a curiosidade e ampliar nossos conhecimentos culturais, o estudo dos nomes de lugares traz consigo uma carga histórica, geográfica e semântica que merece ser estudada cientificamente.
Assim, é através deste trabalho que Cezar tenta chamar a atenção das pessoas para a história dos primeiros nomes geográficos da terra, além da necessidade de análises científicas e aprofundadas da toponímia, uma vez que muitos desses estudos são de cunho não científico. “A sergipanidade, enquanto movimento de celebração do que é sentir Sergipe, também pode ser feita na academia, e de forma séria”, diz. Para ele, essa presença pode ter sido apagada em outros lugares, mas não na história toponímica.
Francielle Couto (bolsista)
Edição: Márcio Santana e Marcilio Costa
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