Um pedaço do centro da cidade muitas vezes despercebido, outras vezes evitado. Paredes que são testemunhas de histórias de uma época de apogeu. Berço da boemia, recanto de música, jogos e outros prazeres. Do que era passagem obrigatória para homens importantes em busca de diversão, hoje é um caminho evitado, até recentemente, reduto de uma prostituição bem menos sofisticada, banheiro a céu aberto e ponto de tráfico e uso de drogas (ver nota do editor, ao final desta reportagem, sobre mudanças recentes no Beco). Os resquícios da história saltam aos olhos dos poucos transeuntes e comerciantes que insistem em manter viva essa importante artéria do Centro Histórico de Aracaju, o Beco dos Cocos.
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Atualmente travessa Silva Ribeiro, o Beco é um dos locais mais antigos da cidade. Localiza-se entre a Praça General Valadão e a Rua Santa Rosa. É um atalho para quem vai da praça e quer chegar aos mercados centrais. Os comércios em funcionamento são poucos e nas paredes dos casarões ainda é possível observar a arte de grafiteiros que em 2009 fizeram intervenções artísticas no local.
Em setembro de 2009, a Superintendência Municipal de Transporte e Trânsito (SMTT) realizou no entorno da praça General Valadão um evento para estimular os pedestres a utilizarem a via, em comemoração à Semana do Trânsito. Com o gancho, estagiários da Fundação Cidade de Aracaju (Funcaju) viram no local forte potencial para intervenções artísticas, nascendo aí a Sexta no Beco. O movimento trouxe vida à estreita rua, que passou a contar com programação variada às sextas feiras no início da noite. Mais de meio século depois, as artes voltavam ao Beco, desta vez, atraindo um publico diferente: jovens universitários em busca de um lazer alternativo. Entre as atrações estavam peças de teatro, espetáculos circenses, música e grafite.
Efêmera, a Sexta no Beco durou apenas seis meses, o suficiente para chamar a atenção da antropóloga Elayne Messias Passos. Consumidora da arte exposta no espaço, a itabaianense viu neste movimento um atraente objeto de estudo. Mas devido à dificuldade em encontrar fontes e documentos para sua dissertação, a então mestranda encontrou também no Beco outra fonte de estudo atraente e instigante: a sua história. “Comecei a tentar perceber o beco como um espaço de resistência no Centro de Aracaju,” diz a antropóloga. Fascinada pela cultura boêmia, Elayne passou a estudar a história do beco e seus personagens. Como objeto de estudo, o beco “perdido” começa a ser descoberto, sua história desvendada e seus personagens apresentados.
No caminho tinha um beco
Aracaju foi fundada em 17 de março de 1855. Residências de famílias mais abastadas foram construídas no entorno da área que corresponde ao atual Centro Histórico. Além dos moradores com alto poder aquisitivo, a nova capital também era construída por trabalhadores migrantes do interior, que se estabeleciam em alojamentos de fabricas têxteis no Bairro Industrial ou no Vaticano, prédio com grandes proporções, incomum para a época, que serviu como uma espécie de cortiço, abrigando a classe operária e também prostitutas. O beco surge como uma importante rota de passagem de cargas de cocos, o que explica o seu batismo.
Com o povoamento da nova capital, também surgiu a necessidade da existência de um local onde os homens pudessem satisfazer os seus desejos e alimentar suas aventuras extraconjugais, e que também pudesse servir como ponto de encontro de boêmios. Nesse contexto, o Beco dos Cocos aparece como o local ideal. Distante o suficiente da Catedral, onde estavam localizadas as residências das famílias mais abastadas e onde a moral era prezada, a travessa recebia novos moradores e investidores, que perceberam no local o seu potencial para bares e casas de jogos. Os estabelecimentos lá criados serviam não só aos ricos, mas também atendia a classe trabalhadora, residente no bairro Industrial e Vaticano. O local passou a despertar a curiosidade e os desejos, atraía os olhares e conquistava os homens da sua época.
Instalaram-se no beco boates e cabarés, dos mais simples aos mais sofisticados, e o seu apogeu foi entre as décadas de 1940 a 1960. Em suas pesquisas, a antropóloga encontrou na literatura ricas descrições do ambiente. Na ficção, o local é lembrado em obras do modernismo: “me surpreendi com Tereza Batista Cansada de Guerra, personagem de Jorge Amado, que foi iniciada como prostituta no Beco dos Cocos”.
Na vida real, o memorialista sergipano Murilo Melins, descreve em sua obra a existência da Pensão da Marieta, que era a mais elegante e melhor frequentada. Possuía as melhores e mais caras damas da noite. Por lá trabalhavam Princesinha, Florzinha, Verdinha, Fuega, Helena Jabá, Arlete, Maura e a famosa Gilda. Essas damas, devido a discrição, eram muitas vezes confundidas com moças da sociedade e frequentavam o comércio das ruas João Pessoa e Laranjeiras e também os cinemas. O destaque também vai para o cassino Bela Vista e o Dancing Xangai, que contava com uma decoração temática oriental.
Democrático, o beco não era frequentado apenas por carregadores de coco, estivadores e outros trabalhadores braçais. Os cabarés também recebiam banqueiros, comerciantes e membros da elite sergipana. Entres os frequentadores mais ilustres estavam o ex-secretário de educação do estado Luis Antônio Barreto e o escritor Murilo Melins. “É uma característica que se preserva até hoje. Em Aracaju não se vê os ricos tão separados dos pobres. É claro que existe a segregação econômica, mas ainda é possível ver ricos e pobres frequentando os mesmos lugares,” ressalta a antropóloga.
A boate Xangai era uma das mais suntuosas: a decoração oriental trazia ao local charme e elegância. No térreo, funcionava um cassino e no andar superior ficavam os quartos usados para a prostituição. O cassino Bela Vista ficava localizado na divisa com o Mercado Central e misturava o sexo fácil com os jogos de azar. Já consolidado como “complexo de meretrício”, as boates e prostíbulos ganhavam fama. O Luz Vermelha, Miramar, Night and Day e o Fresca reuniam artistas, jornalistas, intelectuais e os mais variados segmentos da sociedade.
Além de funcionar como zona de prostibulo, os historiadores sergipanos Andreza e Dilton Maynard destacam em sua obra outra função do Beco dos Cocos: a de conter os estivadores para que não adentrassem na cidade em busca de sexo, bebidas e jogos. Desta forma, a gente do cais não se infiltrava entre a sociedade aracajuana. Ao analisar esta afirmação, a antropóloga vê uma animalização destes indivíduos indesejados: “Nos remete a um estado de barbárie, onde os tipos citados personificariam francos atiradores em linha de batalha, ou seja, bárbaros prestes a invadir o território de Aracaju, vencidos pelos encantos das prostitutas, que por sua vez, atuavam como heroínas, cuja função era proteger as moças de família do assédio violento desses selvagens, o que possibilitou a manutenção desse mercado sexual por algum tempo”, analisa.
O Centro Histórico de Aracaju, tombado pelo Patrimônio Histórico Estadual, recebeu reformas em 1989, porém o Beco dos Cocos ficou fora das obras. Em 2009, com a ação da Semana do Trânsito, diversos artistas passaram dias no local e com sua arte deram vida novamente ao beco, o que não significou uma revitalização, mas melhorou o seu aspecto, o que possibilitou os eventos semanais da Sexta no Beco.
O Beco na atualidade
Com o tempo, até as cores dos grafites nas paredes começam a perder força. O cheiro no local dá a impressão de se estar em um banheiro a céu aberto. Hoje, o comércio é tímido, dos dezesseis espaços pra lojas existentes, apenas quatro funcionam. Jeferson França mantém no beco uma loja de fogos de artificio. O comércio funciona há mais de trinta anos no local e foi fundado pelo seu pai. Ele lembra a história do Beco e compara com os dias atuais: “antigamente tinha muita prostituição e bebidas, mas como os bares fecharam isso acabou. Mas muitos usuários de crack ainda permanecem por aqui,” diz o comerciante. Segundo ele, a localização em que sua loja está não prejudica suas vendas: “somos bastante procurados, mesmo não investindo muito em propaganda. Os usuários de drogas que ficam aqui não mexem com ninguém, nem comigo nem com os clientes da loja. Não pretendo mudar daqui,” afirma.
Já Wagner Alves Germano, dono de uma loja de produtos de caça e pesca afirma que pouca coisa mudou desde que o comércio foi fundado por sua mãe em 1992. Ele se sente prejudicado: “dificilmente a polícia passa por aqui e eu tenho que pagar segurança particular”. O comerciante sugere melhorias: “poderia ser feito um calçadão aqui, melhoraria bastante. E é uma pena a Sexta no Beco não ter continuado”.
Embora o Centro da cidade tenha um grande movimento de pessoas, o trânsito de pedestres pela travessa é tímido. Poucos que trabalham em seu entono utilizam a via como atalho da praça até a rua Santa Rosa. O mau cheiro do local faz com que alguns transeuntes passem cobrindo o nariz com as mãos, como é o caso da dona de casa Marta Regina. Ela costuma atravessar o beco sempre que vai à Secretária Estadual de Saúde, que fica localizada na esquina da travessa. Ela revela que sente medo do local: “depois de anoitecer eu não passo mais por aqui,” diz. E mais uma vez, a Sexta no Beco é lembrada com saudade: “quando tinha os eventos aqui, o lugar ficava movimentado e eu trafegava sem medo”.
A arquitetura característica da época da fundação da cidade e as cores do grafite formam um contraste. A mistura do antigo com o moderno torna o Beco dos Cocos um lugar exótico e pitoresco. A fotógrafa aracajuana Verônica Dantas reconhece o valor visual do lugar. Ela o fotografou a primeira vez quando fazia um curso de fotografia digital na UFS, depois disso, volta ao local para registrar as mudanças ocorridas. Para ela, a cultura é a solução para o lugar: “Precisa ter mais investimento cultural, além de melhorar a infraestrutura para atrair os turistas”.
A influência do passado pesa sobre o presente do Beco dos Cocos. O local, outrora marginalizado, hoje, continua à margem. “Um beco é como um apêndice. Que não serve pra nada, só pra matar quando sutura”, finaliza Elayne que, ao decorrer do seu estudo, passou a ver o beco com outros olhos.
Nota do editor: voltamos ao Beco
Esta reportagem foi realizada em novembro de 2014 para o Jornal da UFS, não tendo sido publicada até então. Neste período, algumas mudanças no Beco dos Cocos foram percebidas: não havia sinais de moradores de rua e usuários de drogas, o mau cheiro marcante também já não se notava. Não se viam, da mesma forma, as prostitutas que há dois anos “faziam ponto” nas redondezas.
Conversamos com os comerciantes entrevistados na ocasião – suas lojas permanecem funcionando nos mesmos locais. Wagner Germano confirma que o mau cheiro não se percebe mais, já que eram os moradores de rua e usuários de drogas que usavam o local público como “banheiro”.
Entretanto, o local continua sendo pouco usado por transeuntes. A movimentação que mais se nota é de funcionários de comércios das redondezas e de clientes das poucas lojas que permanecem funcionando no Beco dos Cocos.
Marcos Pereira (bolsista)
Marcilio Costa
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