Eram apenas os acordes musicas que faziam com que Raíssa Santana, ainda bebê, manifestasse alguns – raros - movimentos do seu corpo. Aos seis meses de vida, ela não sentava, não tinha fixação do tronco nem da cabeça e não evoluía como os demais bebês da mesma idade.
“Minha filha não acompanhava o desenvolvimento das outras crianças e eu ficava me questionando o porquê, já que saí da maternidade sem nenhuma constatação de problemas com ela. Além disso, a minha inexperiência me fazia acreditar que cada pessoa tem o seu tempo, o seu momento de desenvolvimento, e que o dela iria chegar na hora dela. Eu não enxergava. Nenhuma mãe quer enxergar as limitações dos seus filhos, mas foi outra mãe quem me alertou: minha filha tinha paralisia cerebral e eu não sabia”, relatou Janaína Santana, mãe de Raíssa.
Do desconhecimento da deficiência à aceitação e à busca por apoios pedagógico e educacional, foi na união entre a música e a dança que Janaína viu o desenvolvimento cognitivo e motor de Raíssa. Mais precisamente através dos trabalhos da professora e pesquisadora do Departamento de Educação em Saúde do campus de Lagarto da UFS, Lavínia Teixeira Machado, cujo doutorado buscou analisar os efeitos da dançaterapia na qualidade de vida de indivíduos com paralisia cerebral.
Desde 2013, a professora coordena o Grupo TALT (Técnica Aplicada Lavínia Teixeira), que leva a 28 pessoas com disfunções neuromotoras – dentre homens e mulheres com faixa etária entre 15 e 29 anos - uma melhor qualidade de vida, abrangendo atividades expressivas, sensitivas, sensoriais, criativas, motoras e rítmicas através da dança.
Segundo Lavínia, foi a paixão de Raíssa pela dança que a motivou, ainda em 1997, na graduação de Fisioterapia, a ampliar seus estudos sobre o assunto e sobre o alcance terapêutico, social e cognitivo que ele proporciona a pessoas com transtornos motores de origem central.
“A relação de todo indivíduo com o ambiente externo acontece através do corpo e, consequentemente, de todas as suas funções em perfeita ordem. Quando há uma limitação motora, ocasionada por disfunções neurológicas, há também uma grande quebra na capacidade de externar e evidenciar uma individualidade perante a sociedade. Dessa forma, a pessoa com paralisia cerebral precisa de estímulos que lhe proporcionem uma melhor aceitação e um maior conhecimento do seu próprio corpo. Neste quesito, não há nada mais pontual que a dança”, explica Lavínia.
E não é só pelo ritmo. Lavínia ressalta ainda que o conhecimento corporal proveniente da dança possibilita a aceitação do indivíduo diante de quem realmente ele é, sendo capaz de direcionar a sua autoestima. “Quem enxerga a paralisia cerebral como uma doença é a sociedade, não é o indivíduo. A limitação motora provocada por disfunções neurológicas não impossibilita alguém de ser inserido socialmente e a dança mostra muito bem isso. Essas pessoas se expressam para uma plateia que está ali para enxergá-las através do melhor que podem oferecer. Não pelas suas limitações, pelo que não podem. E isso é gratificante, transforma”, completa a professora.
Por falar em autoestima, Janaína observa a vaidade, a disciplina e o perfeccionismo de Raíssa para dar o melhor de si em cada apresentação. “Ela tem vaidades como qualquer menina da idade dela. Não sai de casa sem se sentir devidamente arrumada, gosta de escolher as roupas, os sapatos e como vai prender os cabelos. Repete as coreografias constantemente, prestando atenção em todos os movimentos do corpo para dar o melhor que pode. E consegue. A paralisia não a paralisa”, esclarece.
A fisioterapia como auxílio de funcionalidade
A compreensão da identidade e da funcionalidade do corpo da pessoa com paralisia cerebral fez com que Beatriz Menezes de Jesus, 19, estudante do sexto período de Fisioterapia do campus de Lagarto, manifestasse interesse na condição terapêutica da dança, tornando-se uma das orientandas do Grupo TALT.
Segundo ela, há inúmeros preconceitos no que se refere ao corpo da pessoa com paralisia cerebral, sobretudo em sua fragilidade. “As pessoas acreditam que qualquer movimento pode machucar, quebrar ou agredir. É cultural, uma vez que a pessoa com deficiência é associada unicamente a suas fragilidades. No entanto, isso não condiz com a realidade. São pessoas que podem – e devem – ser inseridas na sociedade como qualquer outra. Então me interessei pelo projeto para tirar esse medo dos outros. Queria contribuir para mostrar que eles podem evoluir em questões físicas, mentais e sociais através da dança. E, claro, além de tudo, serem respeitados pelo que são”, conta.
Além disso, Beatriz ressalta que a fisioterapia aliada à dança não funciona como tratamento, uma vez que a paralisia cerebral não é uma doença, mas sim como finalidade terapêutica. “A Paralisia cerebral é uma deficiência, não uma doença. Nesse sentido, a fisioterapia contribui para o alcance terapêutico promovido pela dança, de forma a minimizar dificuldades motoras, respiratórias, cardíacas e de expressividade”.
Qualidade de vida
Em mais de vinte anos de estudos sobre o tema e nos três anos de aplicabilidade do Grupo TALT, a professora Lavínia Machado destaca o maior benefício da dança como forma terapêutica em indivíduos com paralisia cerebral: a qualidade de vida.
De acordo com ela, ainda que o indivíduo tenha limitações neuromotoras, o sentimento de pertencimento social é indiferente à sua deficiência. “Todo mundo, em sua perfeita funcionalidade ou não, quer se sentir incluído socialmente. Quer ser visto, notado e reconhecido por outras pessoas. E a paralisia cerebral não paralisa esse sentimento”, explica a professora.
Ela diz ainda que todas as pessoas atendidas em sua pesquisa tiveram melhoras significativas na qualidade de vida, uma vez que a terapia através da dança permite a exploração do espaço, transformando o ambiente e gerando autoconfiança, autonomia e independência ao indivíduo.
“Indiscutivelmente, são pessoas que se conhecem e se reconhecem melhor depois da dança, externando suas preferências e seus sentimentos diante do mundo que as cerca. Pessoas jovens, que não conseguiam ter movimentos mínimos de repetição e, hoje, conseguem assimilar e reproduzir uma coreografia inteira, tendo avanços significativos na autoestima e, consequentemente, na qualidade de vida”, diz.
Mas o avanço não é exclusividade de quem está na prática da dançaterapia. Pais, professores e pessoas próximas também relatam progressões na qualidade de vida e no entendimento das limitações humanas.
“O estudo da Fisioterapia já proporciona uma consciência corporal diferenciada, mas lidar diretamente com pessoas com paralisia cerebral me fez entender que todos devem ir em busca do que almejam, sem colocar suas barreiras em primeiro plano. Dessa forma, posso garantir que, até agora, foi o maior aprendizado que a vida acadêmica me deu”, explicou a estudante Beatriz Menezes, que está no Gupo TALT há dois anos e meio.
Janaína Santana completa. “Aos olhos da sociedade, o movimento do corpo diante de uma música ou de um som, é algo muito simples e perfeitamente assimilado, mas não é. Quem convive diariamente com isso sabe que a dança exige disciplina, respeito e conhecimento corporal, coisas que nem toda pessoa, ainda que com uma saúde física perfeita, consegue fazer. Raíssa tem tudo isso e não há como enxergar a dança sem enxergar toda essa idéia de acolhimento e dignidade”, explica.
Diante dos resultados, a professora Lavínia Machado ressalta que a dança, como forma terapêutica, não se resume apenas a dar passos. “O maior movimento da dança é ultrapassar barreiras. Todos os dias, a pequenos passos e a grandes resultados”.
Jéssica Vieira
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